A arte fotográfica de Valdeci Ribeiro
Por Elmar Carvalho Em: 03/10/2018, às 05H14
A arte fotográfica de Valdeci Ribeiro
Elmar Carvalho
Tomei conhecimento pela TV de que Valdeci Ribeiro de Carvalho, conterrâneo e irmão maçônico, havia publicado o livro Piauí – sertão rio mar, referto de belas fotografias de paisagens de diferentes rincões piauienses, do sul ao norte. Foram exibidos alguns slides de suas páginas. Logo percebi a alta qualidade de sua programação visual, a sua bela diagramação, a rigorosa escolha das fotografias, bem como a perfeita nitidez da impressão, mercê de um excelente projeto gráfico, com a utilização, sem dúvida, de equipamentos de última geração.
Sexta-feira adquiri um exemplar, numa das livrarias de Teresina. Ante sua beleza e qualidade de seu acabamento gráfico e impressão, tomei o desiderato de emitir breves considerações sobre esse livro/álbum. Embora não seja versado em fotografia, tenho lido, ao longo dos anos, alguma coisa a respeito dessa manifestação artística.
Na parte formal e material, posso dizer que a obra apresenta capa dura e formato grande (aprox. 30cm x 30cm), e certas fotografias ocupam duas páginas, mas sem prejuízo de sua perfeita apreensão visual. O papel é de altíssima qualidade e de espessura adequada ao formato gráfico (couchê furioso 150 g/m²). Todas as fotografias são em policromia. Foi impresso em maio deste ano, em São Paulo, pela Gráfica e Editora Ipsis. Não percebi nenhuma imperfeição no serviço de impressão e diagramação. Todas as páginas se apresentam nítidas e sem manchas ou falhas. Até o processo de colagem de páginas na lombada é o que de melhor e mais consistente existe.
Em suas páginas preambulares a obra apresenta comentários de Renata Junqueira de Azevedo (Os bons ares do Piauí) e de João Cláudio Moreno (Valdeci Ribeiro e a visão concentrada do Piauí), bem como do próprio autor, em que ele consigna o seu fascínio pela beleza da paisagem piauiense, desde tenra idade:
“Nasci piauiense, numa vila chamada Passagem do Meio, interior de Campo Maior. Da casa grande do meu avô, numa pequena colina, pode-se contemplar quase toda a vila: as demais casas, a capela, o cemitério, os currais, animais pastando e todo um vale, onde passa um riacho escondido por oiticicas centenárias. Mais ao longe, a serra e o rio circundam-na como se quisessem esconder e preservar a magia daquele lugar.
Vivi naquela vila até os quatro anos de idade. Depois fui morar em Campo Maior, cidade cuja natureza é composta por campinas, extensos carnaubais, a Serra de Santo Antônio e por rios da Bacia do Longá.
O íntimo contato com a natureza, durante minha infância e adolescência, ocorreu nestes dois lugares, marcando indelevelmente minha memória afetiva e minha ligação com a mesma.”
Do seu depoimento acima, podemos depreender que essa paisagem parece ter ficado impregnada em sua alma e em sua retentiva de forma inapagável, como gravada a fogo através de pirogravura policromática. E tudo isso, mais tarde, sobretudo em sua maturidade, seria expresso em sua pintura fotográfica. Disse pintura fotográfica porque as fotografias de Valdeci Ribeiro para mim têm status de verdadeiras pinturas, conforme adiante demonstrarei.
Julgo oportuno transcrever as seguintes palavras de João Cláudio, extraídas do texto a que me referi acima:
“Mas voltemos ao exótico detalhe do médico fotógrafo que não é radiologista, mas gastroenterologista. Valdeci foi um desbravador no âmbito de sua especialidade dentro do Piauí. Talvez tenha sido um dos primeiros, se não o primeiro, a investir em alta tecnologia nos exames endogástricos. Inventou pioneiramente na sua terra a endoscopia digestiva. (...) Ele vai para as entranhas. (...) Todas as imagens remetem ao estômago: cavernas inimagináveis, surpreendentes; enormes extensões dentro de pedras; o cânion do Rio Poti com milhares, talvez milhões, de informações; o imperceptível camuflado no intestino do delta, só possível e passível de ser visto se na interioridade da complicada e labiríntica reentrância de seus igarapés; flora e fauna exuberantes no sagrado santuário escondido.”
O fotógrafo foi gestado ainda nos seus primeiros anos, ao contemplar as esplêndidas paisagens de Campo Maior, paisagens que ele, depois, exaltaria através de sua arte, e que eu também louvei em meus versos. As imagens dos exames endogástricos, que ele produzia, na condição de gastroenterologista, como insinua João Cláudio, podem ter contribuído para ele se tornar o grande fotógrafo da natureza, que ele veio a se tornar, propiciando-lhe a acuidade visual, o cuidado com os detalhes, a atenção meticulosa para com as singularidades, que fazem toda a diferença entre um Mestre e um mero mela-tintas ou um tosco borra-botas.
Sempre admirei (apesar de lhes ter certa repulsa) a paciência de um caçador, que “cochila” na mira, para a precisão do disparo; que espera toda uma noite, para conseguir o seu objetivo. Valdeci parece ter essa mesma paciência, parece possuir igual persistência. Ainda bem que a sua “arma” é apenas uma boa e inofensiva câmera fotográfica, e não uma espingarda bate-bucha ou sofisticado rifle. Aliás, diante das atuais leis ecológicas e de uma mais apurada sensibilidade ambientalista, as armas de fogo para caçadas estão sendo aposentadas ou trocadas por máquinas de “caçar” imagens da fauna e da flora. Com relação a animais silvestres, conquanto não seja a sua especialidade, creio, conseguiu um surpreendente flagrante de variadas espécies de aves a esvoaçarem, dos mais variados tamanhos e coloração. Em outro feliz momento, logrou fotografar um coreográfico voo de rubros guarás sobre um exuberante manguezal.
Valdeci se esmera em aguardar o momento mais adequado de luminosidade, em procurar o melhor ângulo, para conseguir o resultado que deseja. Em busca da angulação desejada, vira a câmera um pouco mais para a direita ou um pouco menos para esquerda; inclina-a um tanto para cima ou um pouco menos para baixo, quando não opta por um tiro certeiro frontal e “mortal”. Nesse mister, adota, sem dúvida, as mais incômodas e cansativas posições, conforme o lugar em que se encontra e a angulação desejada. Como disse, são esses pormenores, essas graduações de “tempero” que distinguem um verdadeiro artista de um simples e bisonho diletante.
Acentuo que ele, além de ser exímio fotógrafo de abertos e dilatados panoramas de serras, campinas e florestas, também se esmera nas fotografias de detalhes, seja de uma gruta, de um cânion, ou de um paredão rochoso. Nisso aguarda a iluminação adequada e procura a coloração, a distância, a angulação e textura que lhe convém. Com isso, com esses cuidados e arranjos metódicos conseguiu produzir fotografias, que na verdade podem ser consideradas verdadeiras pinturas abstratas e geométricas, ou mesmo uma mistura de ambas.
Pelo modo como captou as figuras rupestres, as imagens ganham foro de uma (quase) pintura primitivista, tal o contorno, textura e volume obtidos. Uma de suas fotos, por efeito do ângulo utilizado, me fez lembrar uma gárgula ou mesmo uma carranca de barco fenício. Outras, parecem retratar lindas e criativas esculturas modernas e até mesmo figurativas. Em escassas palavras, posso dizer que ele teve olhos que souberam enxergar o que muitos olhares desatentos nunca viram.
Para fazer todas as suas imagens, o autor gastou vários anos e empreendeu várias expedições fotográficas aos locais escolhidos, alguns inóspitos e de dificílimo ou penoso acesso. Assim, percorreu o Piauí do extremo sul ao Delta do Parnaíba, na extremidade norte. Foram cenário para suas lentes as fascinantes paisagens do Parque Nacional de Serra da Capivara, Serra Vermelha, Cânion do Rio Poti, Delta do Rio Parnaíba, Parque Nacional de Serra das Confusões e Parque Nacional de Sete Cidades. Podemos, dessa forma dizer, devassou e desvendou boqueirões, trilhas, socavões, cânion e grutas; destrinçou o rendilhado das ilhas e igarapés do Delta do Parnaíba, elucidou as confusões da serra de igual nome e desencantou a misteriosa Sete Cidades, “para novos e mais / deslumbrantes encantos”, como disse num de meus poemas.
Foi graças a todas essas peripécias e “arte-manhas” manhosas que ele conseguiu dar um quê de diferente a algumas paisagens, que se tornaram uma espécie de “clichê” ou “lugar-comum” dos cartões postais e cartazes. Como exemplo, refiro uma fotografia que ele tirou da famosa “Pedra Furada” (Serra da Capivara), que ficou bastante “revitalizada” com um céu nublado, revolto, tempo (como falamos) bonito para chover, em que as nuvens parecem estar preparando em seu laboratório as “chuvas amorosas”, como no dizer de H. Dobal. O furo da pedra parece o visor de uma caldeira em ebulição.
Pelo que pude observar o autor não interfere em suas fotos com efeitos ou lentes especiais. Seus “efeitos” são naturais, na forma como descrevi. A não ser em duas ou três delas, utilizou recursos artificiais, apenas para lhes retirar um excesso de luminosidade, ou para lhes dar um pequeno acréscimo de brilho. Numa delas utilizou uma lanterna, por tê-la produzido à noite; o jato de luz foca apenas uma cachoeira, mas deixa ao fundo a beleza noturna de um céu resplandecente de estrelas. Em síntese, cada fotografia é uma tela, digna de ser ostentada em excelente moldura. Nesse sentido, poderia afirmar que essa obra é uma legítima pinacoteca encadernada.
Recomendo esse fotolivro, um dos melhores no gênero, pela beleza de suas imagens e por sua qualidade gráfica. Talvez algum leitor venha a achar que me excedi no uso de adjetivos. Respondo que não; apenas os usei na medida exata do que entendi caber a seu mérito. Folheá-lo lentamente correspondeu a uma verdadeira expedição turística, que fiz, sem sair de minha casa. Ademais, não é só um livro de arte fotográfica, mas é, em si mesmo, uma obra de arte, que poderá ornar a sala de uma casa ou o hall de uma clínica, de um hotel ou de qualquer comércio ou repartição pública.
No meu caso, ocupará o pódio de minha biblioteca, ao lado de outros livros de arte.