A arte de ficar em casa

ROGEL SAMUEL

Como os velhos como eu desenvolvem a arte de ficar em casa? Americanos velhos (e ricos) aprender a fazer turismo. Viajam pra cima e pra baixo.

A tia de minha amiga X., brasileira, solteira, falecida recentemente, com mais de 90 anos, de cadeira de rodas, todos os anos fazia um cruzeiro para a Europa, levada pela cuidadora (e seu filho, um rapaz que a ajudava).

Não era rica, mas tinha duas aposentadorias, passava o ano pagando as prestações do navio.

Como os parentes a impediram no último ano, com a passagem já paga, desgostosa arranjou um câncer no fígado e morreu. Sem dor.

Assim era o  Barão de Nova Friburgo, que tinha doze fazendas de café e construiu o Palácio do Catete, sede do governo brasileiro até Juscelino.

Pois outra amiga, Helena, que vivia de aposentadoria do INPS, e sentia dificuldade de pagar o condomínio, mas nunca perdeu a pose de grande dama, porte altivo, como se estivesse em Palácio. Usava uns brincos de plásticos coloridos e umas bijuterias baratas de aço que no seu corpo pareciam reluzentes jóias preciosas. Perto dela a conversa alongava a noite, a prodigiosa memória dos fatos, a cultura enciclopédica. Narrava viagens. Paris, New York. Gesticulava como se estivesse no salão da marquesa sua tia.

Helena vendeu seus bens para viajar, jóias, pequenos apartamentos. Vendia e gastava todo o dinheiro em Paris. "A única coisa que não se perde são as viagens", dizia.

Certa vez arriscou seu salário comprando uma cadeira antiga. "Preciso dela, para compor um canto da sala", comentou. Eu estava junto.

Morava num belo apartamento no Flamengo, único bem que restou. Tinha boa biblioteca, num dos cômodos, nunca possuiu um aparelho de TV. Nunca via tevê. Quando sozinha, restava na sala, um livro nas mãos, ou se perdia em divagações.

Lembro de seus belos quadros, do carrilhão. Helena servia o chá que bebíamos em Sèvres que pertenceram a sua tia, namorada do Conde Carneiro Ribeiro, quando este ainda solteiro. A tia recusara-se a casar com o Conde, dono do Jornal do Brasil. O chá, servido com uns biscoitinhos que lembravam as madeleines de Proust...

Era a arte de ficar em casa.