A aparição de um tilacino
Em: 08/12/2024, às 09H27
[Geovane Fernandes Monteiro]
Em A aurora no bocejo de um tilacino, Francisco Gomes reúne poemas não necessariamente com inovações estéticas, discursivas-existenciais. A surpresa compreende a incessante recusa, de alguma sorte, à realidade estabelecida. Especialmente essa inquietação se mostra mais universalizante, mais desdobrada quanto aos trabalhos anteriores do poeta. Na lista dos seis livros publicados, poderíamos assegurar a obra-prima do autor, mas também a mera passagem de um livro para outro, tendo em vista o nivelamento ceder lugar a novas escolhas inerentes ao processo de escrita. Desse modo, não surge sua obra-prima, todavia, uma obra-prima.
Para tanto, o hipertexto ante os nonsenses do mundo e seu sistema. Com relativo imediatismo social, o geológico das vozes silenciadas ganha espectro, expressivo raio de distância, a exemplo de Canto geral, de Pablo Neruda. Porém, diverso do autor chileno, não contamos com poemas históricos, documentais; ao menos não fica explícito um comportamento verbal mapa-múndi. Por outro lado, figuras da história, da mitologia, da astrologia, da literatura, das artes plásticas e cênicas, da filosofia, da teologia etc. facultam um caráter transnacional no tocante à dispersão do panteísmo poético. Por essa razão, apesar de linguagem não essencialmente rebuscada, tal riqueza exige (re)leitura atenta, visto demandar não somente sensibilidade, mas também conhecimento prévio.
Numa ramificação do próprio ser, a poesia, avessa à domesticação dos valores transitórios — a poesia se esparge nos “acordes dos pássaros/dos bêbados/das bichas/dos loucos/dos suicidas/das freiras/das virgens/dos fantasmas”. Logo, a aurora do tempo presente: as mesmas contradições; agora abrigando uma multifacetada angústia da vida nem sempre vivida. Porém, essa angústia, não raramente surreal, psicodélica, se materializa no hedonismo da dimensão poética a confundir autor e obra. O resultado é colisão com a parafernália do dia a dia cada vez mais veloz e fragmentado.
Ademais, dentro deste início de terceiro milênio, com suas unânimes teses comerciais em tempo real, A aurora no bocejo de um tilacino integra poemas meditativos, orgânicos. Eles buscam respostas, afirmam, provocam, doem, questionam o próprio buscar do nó que ata a vida. Eis a pedra angular da obra: o imagético-discursivo percorre os versos metafísicos e a indefinibilidade heideggeriana ocupa todo o lugar-mundo. Nesse viés, sempre com ousadas investidas filosóficas, a presença de paradoxos não separa do próprio processo de existir o ser sonhador e inconformado, o ser autoficção biográfico. Como já dito, Francisco Gomes não abandona a dicção geral de obras como O despertar selvagem do azul cavalo domesticado (2018) e Um outro universo ou tonal (2021), para citar duas de uma antologia livre de ocupação utilitária. Isso porque, dentro de elementos míticos e ontológicos, o extinto marsupial carnívoro (o título do livro à Hermann Hesse) ressurge quando sua agressividade coaduna com uma aguda consciência de uma realidade ainda de capatazes dos donos de fazenda, como expressa Eduardo Marinho. Assim, diante da histeria coletiva, o poeta descobre precisar “demais de mais de quatro mil e setecentas substâncias tóxicas para paradoxalmente revelar a fúria incandescente da estranheza”. A palavra, sem fantasioso heroísmo, plasma os versos quando privilégios e exclusões ainda alimentam uma literatura de rebanhos salvos.
Por isso, a militância é acolher-se no verso a escapar da sobrevivência obrigatória e da lamentação literária engajada. Assim, a maior frequência e intensidade de o autor se desautomatizar no indomável mundo das elites em geral. Enquanto isso, “os mendigos/loucos/poetas/ou insubmissos corações” reaparecem, acidentais, na consciência da solidão, no quintal de perspectivas de quintal. Dito isso, sem militância didaticista, Francisco Gomes oferece aventuras e desafios ao leitor que concebe a madura poesia na “garganta do tilacino” que, no sono de sua ausência, “satiriza os nanicos gigantes letrados”.
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Geovane Fernandes Monteiro, natural da cidade de Água Branca, PI, radicado em Teresina, PI, é professor formado em Letras/Português e pós-graduado em Linguística Aplicada. É autor dos livros Paradeiro (Contos, Nova Aliança, 2016) e Depois das horas (Poesia, Caravana Grupo Editorial, 2021).
Francisco Gomes é piauiense de Campo Maior, mas vive em Teresina, PI. Poeta, músico e bacharelando em letras/língua portuguesa, é autor de A aurora no bocejo de um tilacino (2024), Um outro universo ou tonal (2021), O despertar selvagem do azul cavalo domesticado (2018), Face a face ao combate de dentro (2016), Aos ossos do ofício o ócio (2014) e Poemas cuaze sobre poezias (2011). Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, leitura, contemplação e escrita.