A alma em exposição: o que aprendi com os diálogos de Nelson Rodrigues
Por Denise Veras Em: 24/10/2025, às 13H13
Em minha trajetória como escritora, poucos autores me confrontaram com uma crueza e uma inteligência artística tão desconcertantes quanto Nelson Rodrigues. Os seus textos, longe de serem simples representações de costumes, configuram-se como verdadeiras anatomias do espírito humano, e o seu diálogo é a lâmina mais afiada dessa dissecação. O que aprendi ao mergulhar nas falas de personagens como Zulmira, Olegário, Geni e Seu Noronha é que o diálogo, em sua forma mais teatral e despojada, é o veículo essencial para expor a verdade pulsante e hedionda que jaz sob o verniz social.
A obra de Nelson, classificada por ele mesmo como "tragédia carioca", rejeita a simples comédia de costumes, optando por um território do trágico que se manifesta justamente na complexidade dos seus personagens e de suas falas. O diálogo rodrigueano não se limita a avançar a trama; ele conjuga a realidade concreta, muitas vezes situada nos cenários da Zona Norte do Rio, com os impulsos interiores, misturando o psicológico e o mítico à crueza social.
A Desmedida e o Colóquio do Instinto
Uma das maiores lições extraídas de seus textos é a constatação da "desmedida" que domina os seres humanos. Os personagens de Nelson Rodrigues são criaturas paradoxalmente movidas pelas forças mais legítimas da natureza humana: o impulso do instinto, a violência da paixão, a obsessão e a loucura. Seus diálogos são a materialização dessa ação exacerbada e, muitas vezes, irrefletida.
Em A Falecida, por exemplo, os diálogos, embora valorizados pelo coloquialismo, revelam a precariedade social e a miséria existencial. A conversa de Zulmira com a cartomante – e seu monólogo posterior – expõe a irracionalidade que conduz o pensamento de pessoas simples, mais apegadas ao mundo mágico do que à lógica, como se a palavra fosse um clichê de uma verdade inquestionável.
Nos dramas familiares, o diálogo transforma-se em instrumento de tortura psicológica e de busca obsessiva pela verdade oculta. Em A Mulher Sem Pecado, Olegário, consumido pelo ciúme patológico, usa a linguagem para tentar "moralizar o pensamento" de Lídia e forçá-la a confessar infidelidade, mesmo que apenas imaginária. Ele interpela a esposa, exigindo respostas concretas sobre sua fidelidade em pensamento: "Você sempre me foi fiel em pensamento?". Essa insistência em desvelar o "lado abissal e escuro" da natureza humana através da fala é uma característica central, propondo que a salvação viria pelo reconhecimento da própria "hediondez".
A Destruição da Máscara Social
A sociedade, na visão de Nelson Rodrigues, "cultiva um sistema de mentiras". Os seus diálogos têm a função implacável de romper essa farsa.
A franqueza brutal da linguagem é muitas vezes chocante, mas necessária à sua estética. Em Toda Nudez Será Castigada, Geni e Herculano, movidos por seus apetites recalcados e obsessões (o câncer no seio, o juramento de castidade), usam o diálogo para se insultar e se degradar. Herculano se rebaixa ao nível do "cão" que confessa o nojo pelas varizes da falecida esposa e pede que Geni lhe diga palavrões. O diálogo, nesse ponto, não é sobre a comunicação de ideias, mas sobre a catarse pela abjeção.
Ainda mais revelador é o uso da fala para a crueldade cínica, como visto em Os Sete Gatinhos. Quando Seu Noronha confronta o Dr. Portela, a linguagem se torna uma arma de humilhação. Noronha o obriga a confessar ser "contínuo" e a chorar, transformando o consultório em um palco de acusações selvagens. Aliás, a fala é tão potente que Aurora, ao saber do crime de Silene, explode em soluços e admite a própria prostituição: "Eu sou feliz! Ah, sou! Muito!", mostrando que o desejo e a degradação podem andar lado a lado.
O Legado da Intensidade e da Sinceridade Brutal
Nelson Rodrigues valorizou o coloquial da linguagem e a liberdade da imaginação cênica. Os seus diálogos, mesmo em peças classificadas como farsa irresponsável como Viúva, Porém Honesta, nunca devem ser levados inteiramente a sério, pois o teatro farsesco "exibe as fraquezas do ser humano, o caráter falível das suas iniciativas".
O que aprendi com Nelson é que a palavra, quando destituída da hipocrisia e saturada de intenção — seja ela luxúria, ódio, ou ciúme — tem o poder de transcender a realidade e alcançar uma sinceridade brutal. Seus personagens, como crianças, expressam suas verdades intensas, com sua mistura de "pureza, ingenuidade e instinto cruel".
Os diálogos de Nelson Rodrigues ensinam que o verdadeiro conflito não está no que se faz, mas no que se diz. Eles nos forçam a encarar o óbvio ululante, que muitas vezes é a nossa própria incapacidade de ser solidário ou virtuoso, pois, no fim, o homem está sempre fadado a ter seu dia de perdedor. Mas, ao expor essas forças obscuras, Nelson oferece a chance de que elas sejam reconhecidas e, quem sabe, disciplinadas por um código de ética livre de hipocrisias.
O seu diálogo é o próprio teatro da obsessão, onde a natureza humana surge nua, contemplando seus abismos, e nos lembrando que, quanto mais sublime se deseja ser, mais mundano e humano se revela o ser. Essa é a verdade que ecoa e perturba, cena após cena.

