5 poemas de Weliton Carvalho
Em: 22/08/2019, às 17H45
GULLAR
É quando a vida se imiscui do humano
que todas as cores cintilam inteira luz
e se alumiam os porões mais íntimos do existir
tal fachos de relâmpagos sobre as tempestades
loucas do desejo de sentir o vulcão da beleza
transbordando o puro na impureza do feto
que traz consigo placenta, soluços e esperança.
Quando não há mais limite entre o horrendo e o belo:
ambos siameses da poesia esmerilada em amarelo-girassol:
fogo escorrendo em larvas grossas na temperatura exata
em que os metais se fundem em danação e total doçura.
E o vento é tanto que se abrem portas, baús, memória:
se arrebentam lençóis e cheiro de alfazema,
na maresia dentro de uma ilha para além de rios e mares
a desembocar no insólito e indizível,
onde mesmo a voracidade da poesia diz tão pouco,
mas só ela pode penetrar com tanta cumplicidade
e tentar, uma vez mais, iluminar o humano:
eis o reino a descobrir: tudo é tão novo:
o que se tem é a fala, a prosa, o vulgar, a vida menor a pulsar:
a matéria-prima com que a poesia há de construir o belo.
Neste lençol encardido, nestes dias de nódoas profundas,
nesta sujeira entranhada, nascerá o sublime, o cristal,
uma sinfonia límpida soprando alucinada
e reinventando o mundo.
(Weliton Carvalho)
LIVRO
a Anthony Leahyr
Folhas que o outono guarda
para as solidões dos invernos:
lareira que aquece os calafrios mais sombrios,
confessor de pecado e santidade,
onde as palavras se reconhecem plenas
de amor, beleza e angústia, que tudo nele
se (re)inventa mistério
e nada se decifra por completo,
porque tudo prenhe de vida
– fina sinfonia que rege todo universo:
o mundo não basta em si,
é preciso reinventá-lo.
(o mundo, simplesmente, transborda)
Não seria o livro um modo de negar a morte?
Por agora e ainda converso com Shakespeare e Cervantes
e os apresento aos meus filhos, que se encantam tanto.
Gutenberg inventou a máquina de sonhar em vigília
e recolheu as folhas do outono para a primavera –
quando no verão o livro plana à flor do vento lilás,
porque o livro guarda o mundo em colorido,
que os homens perdem a cada instante.
(Weliton Carvalho)
PESSOAS COMUNS MUDAM O MUNDO
a Ivo Dantas
Eu sou a flor que o vento jogou no chão
Mas ficou um galho
Pra outra flor brotar
A minha flor o vento pode levar
Mas o meu perfume fica boiando no ar.
[João do Vale. In. A voz do povo]
O povo
– não o conceito clássico da ciência política –
nem o alcance opaco das constituições:
menos ainda o significante dos discursos políticos.
Mas o povo,
tal meu vizinho,
o irmão do teu amigo,
teu filho
– tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013
e escreveram um poema datado para o futuro.
De repente,
o povo redescobriu a praça,
os protestos na internet não bastavam:
no mundo virtual a vida não transpira:
almas precisavam dos corpos presentes.
A praça é do povo!
como o céu é do condor.
É o antro onde a liberdade
cria águias em seu calor
– relembra o poeta condoreiro.
E o povo sempre recita os poetas
– que os verdadeiros poetas cantam o povo.
E de há muito o poeta sabe:
pessoas comuns mudam o mundo,
porque o fazem girar em sonhos.
E o governo atônito convoca os burocratas,
que nada sabem do povo além das estatísticas
e que bestificado – essa massa sempre amorfa –
recebeu o Império e assistiu a República.
O que é o povo?
– indagam os palácios.
Os cientistas sociais se debruçam sobre Siéyes.
A praça, a velha ágora grega,
– não mais censitária –
nada mais público e popular
ferve num turbilhão de desejos
a dizer: o povo existe.
E agora?
(Weliton Carvalho)
HOMILIA
TENHO um encontro com Deus:
─ José!
onde estão tuas mãos que
eu enchi de estrelas?
─Estão aqui, neste balde
de juçaras e sofrimentos.
(José Sarney)
Não almejo meu texto lido nos púlpitos das igrejas
mormente das igrejinhas literárias,
onde Narcisos
recitam ladainhas laudatórias
refletindo mil espelhos de ego:
nascem panegíricos bumerangue quase constrangedores
e os condoreiros se arvoram em salvar a pátria e as letras:
ninguém se ocupou em colocar o ouvido ao nível do relés,
do puído sol cintilante de todos os dias sobre a morte,
destino derradeiro das vaidades veladas
sobre o vulgar da vida que arde ao sonhar ser pétala,
borboleta, sol alaranjado sobre buzinas a hora do rush.
Ou a tarde devaneando nas asas do dia letargo,
que sucumbiu ao burburinho das máquinas,
humanas algumas, tocadas a salários e contas a pagar.
Também não quero ser ovacionado entre copos de chopes
e anedotas entrecortadas por nobres confrades.
Desejo ardentemente ser lido pelos adversários mordazes
não na esperança da restauração de sentimentos esgarçados,
mas para nos reconciliarmos ante a tentativa da beleza,
quando uma palavra toque a fímbria do azul dilacerado.
Senhor Stendhal, política também é sonho embebido em poesia
e como tal – por vezes – se perde macerado na lida crua da vida.
(bem sei: politica e poesia tocam a alma em carne viva, puro fogo:
sabe o senhor, em França, o que seja ferroada de marimbondo)?:
poesia é a alma em carne viva – ah, como disso sei, senhor Stendhal!
OS OLHOS DE CLARICE LISPECTOR
Oblíquos, transversais, desconcertantes
da quântica vida que transborda:
debalde esforço: ao óbvio me lanço.
Os olhos de Clarice nos clareiam,
Lispector assim, introspectivos, indagam
e eu mudo e impotente os admiro.
Se eu capaz de descrever os olhos de Clarice,
seria erudito;
se capaz de descrever seu olhar,
seria mago.
Mas felizmente só consigo
contemplar esse mistério.
Welinton Carvalho é juiz, poeta e professor universitário. Lança em novembro o livro de poema "Ócio do Ofício". É autor, entre outros, de Sustos do Silêncio.