Tudo é rio: A caudalosa fluidez dos sentimentos humanos
Por Décio Torres Cruz Em: 25/06/2024, às 23H48
Tudo é rio: A caudalosa fluidez dos sentimentos humanos
Décio Torres Cruz*
Tudo é rio (Record, 2024), de Carla Madeira, é um daqueles livros cuja linguagem e estilo nos fisgam desde o início e vai nos surpreendendo a cada virada de página. E ponha surpresa nisso! As imagens inusitadas criadas pela autora nos convidam a ir marcando vários trechos de seus capítulos curtos. Haja fôlego para aguentar tanta beleza! Madeira simplesmente nos dá uma aula de como construir um romance bem escrito.
Embora apresente uma estrutura aparentemente simples, com um enredo que envolve três famílias para nos contar uma malsucedida história de amor, o que mais prevalece no texto é a potência lírica da linguagem narrativa em constante nascença, criando sucessivas emoções fortes.
O enredo gira em torno dos personagens Venâncio, Dalva e Lucy que não se conhecem. Suas histórias envolvem as vidas de seus familiares e vão se desenrolando em paralelo e de forma independente no novelo narrativo até seus fios se encontrarem para a geração de um triângulo amoroso com um final inesperado.
O jovem casal de apaixonados, Venâncio e Dalva, vai construindo seus sonhos com o apoio familiar e de amigos até se casarem e formarem uma bela família. O aparente conto de fadas é ameaçado pelo ciúme de Venâncio que já vinha se mostrando incontrolável. Um dia, a obsessão doentia eclode, gerando um ato imperdoável que mudará o rumo da história de amor, fazendo com que o casal passe a viver como estranhos na mesma casa. Em paralelo, a história de Lucy vai sendo contada. A simples órfã que mora com os tios cresce e se transforma em um ser abjeto, totalmente sexualizada que, ao descobrir seu poder com os homens, acaba sendo expulsa de casa e vai morar perto do casal. A partir daí, passa a alimentar um desejo doentio por Venâncio, que a rejeita, mas depois acaba se deixando seduzir, criando um final totalmente inesperado.
A história desconstrói mitos comportamentais, sexuais, familiares e religiosos, mostrando mulheres fortes e corajosas (Lucy, Manu, Francisca, Dalva e sua mãe Aurora) que não se deixam subjugar por preconceitos e pelo poder sócio-patriarcal e que reivindicam uma nova forma de posicionamento na sociedade. O título, Tudo é rio, metaforiza a condição fluida dos sentimentos e emoções humanas que estão em constante movimento e, mesmo quando aparentam serem sólidos, enrijecidos e arraigados, vão se adequando às circunstâncias mutantes da vida.
Carla Madeira, autora do romance Tudo é rio.
Sobre a autora
Carla Madeira nasceu em Belo Horizonte em 18 de outubro de 1964. Graduada em jornalismo e publicidade pela UFMG (onde foi professora de redação publicitária), possui pós-graduação em marketing. É sócia e diretora de criação da agência de comunicação Lápis Raro. É conhecida pelas obras Tudo é Rio (2014; 2024), A Natureza da Mordida (2018) e Véspera (2021). Foi a segunda escritora mais lida do Brasil em 2021, atrás apenas de Itamar Vieira Junior. Tudo é Rio ganhou o Prêmio Bertrand em 2024 como livro do ano em Portugal. Participou da antologia Tempo aberto: oito décadas em oito contos de grandes autores brasileiros (Record, 2022) com o conto “Corte seco”, ao lado de Antônio Torres e Nélida Piñon, dentre outros.
* Membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Autor de A poesia da matemática (2024), Histórias roubadas (2022), Paisagens interiores (2021), dentre outros.