Rema, canoeiro amigo! A noite se avizinha.

SÔBRE AS ÁGUAS BARRENTAS

ÁLVARO MAIA (NA FOTO EM SUA CANOA)




Sob o sol fugitivo, a tarde prisioneira
abre à invasão da noite as águas do Madeira...
Calor de Agosto. O vento encrespa o sorvedouro,
que embala ao vento langue os lentas ondas de ouro.

- Rema, canoeiro amigo! A noite se avizinha.
Não risca o espaço escuro uma asa de andorinha...
Deixa o barco fugir à flor da correnteza,
e apresta as férreas mãos com vigor e presteza...
Há quem te espere ansiosa, entre as portas da casa,
mostrando à bôca em sangue um sorriso de brasa...

O sol filtra na queda o derradeiro feixe...
A montaria investe e corre como um peixe,
ora em quieto remanso, ora na maresia,
por entre a escuridão da mata fugidia...

Recurvo, o corpo de aço excandece e trabalha,
mas a idéia repousa à janela de palha,
onde um rosto amanhece e um corpo alvoroçado
e um maduro pomar, onde cresce o pecado...

Tudo em nosso redor é um solene incentivo
a êsse beijo de fogo, a êsse abraço furtivo :
o vento, que te afaga, enchendo-te de frio,

êste encanto, esta noite, esta cena, êste rio,
tudo é um riso imaturo, uma carícia calma,
que se lançam do céu sôbre as misérias da alma.

Ao rever a ampla selva em que folguei menino,
sinto meu coração fundir-se em brônzeo sino,
como si a terra fôsse uma igreja, uma aurora,
e o meu corpo em delírio uma tôrre sonora...
Às ilusões da infância, a minha vida acorda:
cada sentido é a fôrça e cada nervo é a corda,
que me levam no rio, áurea flor de bubuia,
na estranha languidez de uma branda aleluia...

A alegria luariza o sonho... -E o sino canta
ante a consolação desta harmonia santa.
Ajoelho em pensamento, entrecruzando os braços,
para beber num sôrvo as selvas e os espaços...

Insculpo em meu olhar, recolho nos ouvidos
tantos quadros da Vida em vidas repartidos...
Longas praias sem têrmo, onde alvejam gaivotas,
bosque em côres aberto e rio aberto em notas,
árvores de São João, sumaumeiras em prece,
doces recordações que nunca a fronte esquece,
heis-de embutir um dia, entre a lembrança rude,
na prata da velhice o ouro da juventude...

Sois o romance, a voz, que nos vem, de repente,
a uma valsa, a um perfume,a uma vista, em que a gente
ouve, abraça, recorda a trindade bendita
- a mãe, a noiva, a irmã, em doçura infinita...

Vivei, entrai em mim ! Quero, tempos afora,
sentir-vos a vibrar, como vos sinto agora,
onde me surja a mágoa, onde me leve o sonho,
imagens maternais de meu berço risonho !

Mais distante, à distância, onde o caudal não dorme,
desliza um batelão, vagaroso e disforme...
Hércules semi-nus lutam, batendo a voga,
e a espuma, em revulsão sob os remos que afoga,
confunde a queixa humana ao rumor de fadigas
da embarcação que lembra as galeras antigas...

-Homens, ó meus irmãos, ó párias que aí dentro ides,
em dolentes canções para a dor de outras lides,
que buscais e quereis, nesse destino obscuro,
despidos de ambição, cegos para o futuro?
Nada! Mas, na floresta onde as hordas selvagens
viam palcas de guerra ao verdor das ramagens,
traçais a nova estrada, ergueis o mundo novo,
por onde há de rolar em marcha um grande povo.

Os dias, que passais em conquistas e arrojos,
viverão dentro em nós, cantarão nos rebojos,
como o sangue brutal destas barrentas veias,
como o suave dulçor destas fulvas areias...

— Rema, canoeiro amigo! O vago céu escorre
uma toalha de breu sôbre a tarde que morre...
Estas margens azuis são muralhas de fumo,
— muros de sombra e mêdo, em que vamos sem rumo...

Tudo apavora, tudo assusta, tudo assombra,
nesta hora de refrega entre o sol-morto e a sombra. .
Há bruxedos de anões sôbre as luras do charco,
índios e iaras trovando à passagem do barco...

Bóia, monstruoso, à proa, o balseiro de uma ilha...
Mas, em cima, o bando irial das estrêlas fervilha.
Erra o bosque em perfume. Há bôcas nos barrancos,
e o lindo luar nascente esparge lírios brancos...

A noite aumenta o espasmo em que nos debatemos,
ouvindo no silêncio o chapinhar dos remos...

É a recompensa... E, enquanto idealizas o beijo
do que te espera muda, em pudor e desejo,
eu guardo a imensa voz destas imensidades
e encho o meu coração de vindouras saudades,
Terra, ó mãe, que me deste, em mesma hora dorida,
a luz do amor, o bem do sonho, o pão da vida!