ELMAR CARVALHO

 

Cedo da manhã deste domingo, segui com destino a Jericoacoara, no Ceará, em companhia de minha filha Elmara e do amigo Canindé Correia. Trinta anos atrás, pilotando uma motocicleta, fiz parte desse percurso; mais precisamente, o fiz até a cidade de Barroquinha, que hoje é uma cidade em franco desenvolvimento, quando na época era um acanhado povoado. A estrada era, então, de piçarra, cheia de catabilos, também chamados de costelas de vaca, que provocavam incômoda trepidação no veículo. Da outra vez, meu destino era Camocim. Desta feita, em Barroquinha, seguimos para Granja, para desta cidade buscarmos a estrada que se destina a Jijoca de Jericoacoara.

 

Na velha cidade de Granja, paramos numa lanchonete de um posto de combustível, onde tivemos oportunidade de jogar conversa fora. O dono do estabelecimento, como todo bom cearense, tem ufanismo de sua terra, razão pela qual disse que Granja era uma cidade grande, quando perguntamos onde ficava o seu centro comercial. Ante tal afirmativa, pensei com os meus botões: “sendo assim, já não faz jus a seu nome, posto que se desenvolveu”. Expliquei ao comerciante, que essa cidade tinha ligações históricas com o Piauí.

 

Os seus padres faziam desobrigas missionárias ao litoral, que hoje pertence ao nosso estado, e algumas lideranças do movimento parnaibano de 19 de outubro de 1822 se retiraram estrategicamente para seu território, quando João José da Cunha Fidié, chefe militar português, adentrou Parnaíba. Ele, então, lembrou que fora feita uma permuta entre o Ceará e o Piauí, ficando o primeiro com o município de Crateús, que na época se chamava Príncipe Imperial, e o segundo, com o seu atual território litorâneo. Isso, acrescento agora, para que o nosso Estado pudesse ter o seu porto marinho, o que até hoje não aconteceu. O nosso porto parece ser interminável como o manto de Penépole, embora por outras razões. Após a rápida prosa, e paga a despesa, marchamos para o nosso desiderato turístico.

 

Logo ao chegarmos à cidade de Jijoca de Jericoacoara, fomos abordado por um membro da Associação de Guias Turísticos, que se propôs a nos orientar na viagem à praia e vila de Jericoacoara. Após acertarmos o preço, seguimos pelo centro do Parque Nacional, que tem algumas variantes de trilhas. O guia disse chamar-se Luzivan dos Santos. Falou-nos que naquele roteiro, pelo meio do parque, o turista poderia perder-se, ou mesmo atolar-se na areia. Em alguns trechos, recomendou-me tracionar o carro. Em alguns momentos a picape sacolejou mais do que as cadeiras das rebundolantes dançarinas dessas bandas/bundas musicais de hoje, em ritmo frenético e inesperado. O certo é que o carro passou por um verdadeiro rebundoleicho ou reboleicho, que nos chacoalhou a valer.

 

Senti-me o próprio Indiana Jones das caatingas nordestinas. Em certo ponto de grosso lençol de areia, me distraí e terminei atolando o carro. O Luzivan, com a sua experiência de guia e de motorista, que disse ser, recomendou-me engatar uma reduzida, e recuar um pouco, em marcha à ré, o que fiz com eficiência e presteza. Depois, segui alguns metros em reduzida, até voltar novamente a usar apenas a tração nas quadro rodas. Em alguns trechos não precisei tracionar o veículo.

 

O guia nos explicou que ele e alguns outros guias da Associação (e não os que ele designava de clandestinos), conseguiam conduzir um automóvel desprovido de tração nas quatro rodas pelo roteiro do areal, graças a um curso que a entidade lhes proporcionara, o qual lhes dera alguns “macetes”, entre os quais diminuir a calibragem dos pneus, bem como fazer uso da marcha e da aceleração adequadas ao terreno. Aproximadamente, meia hora depois chegamos sãos e salvos ao nosso destino final. Contratamos para que ele nos guiasse na volta, desta feita pelo Mangue Seco.

 

Fomos conhecer a praia e o povoado de Jericoacoara. Para que ficasse preservada uma ideia de praia “selvagem” não existem postes de rede elétrica, sendo a fiação subterrânea. Entretanto, a maior parte das construções na parte central e praiana da localidade não tem nada de rústico ou primitivo. Algumas edificações são até confortáveis e sofisticadas. Nessa parte da vila, quase todos os prédios são comerciais, sejam lojas de artesanato, supermercados, mercearias, bares, restaurantes, pousadas, lanchonetes, etc. Soubemos que as casas mais simples, dos nativos, foram edificadas na Rua das Dunas.

 

Vimos a beleza da praça, da vegetação, da praia, das dunas, ao longe, e as embarcações ancoradas na areia. Pelo tipo físico e pela fala, notamos que muitos turistas eram estrangeiros. Pudemos constatar que o preço elevado de vários produtos sofre a influência direta do turismo, sem dúvida. Uma atendente, com a sua fala forçadamente enrolada num portunhol esquisito, denotava ser ela uma espanhola paraguaia, ou seja, uma “gringa” do Brasil, provavelmente de Mangue Seco. Como queríamos voltar logo, para conhecermos a lagoa de Jijoca, seria uma “furada” irmos visitar Pedra Furada, o que nos tomaria, de charrete ou a pé, cerca de uma hora e vinte minutos.

 

Com o nosso guia, retornamos à cidade de Jijoca, de onde iríamos conhecer a lagoa. Fomos através da trilha de Mangue Seco. Esse percurso, em boa parte, é feito pela orla marinha, sem atoleiros lamacentos e sem fofos e traiçoeiros bancos ou lençois de areia. Tudo transcorria muito bem, até deixarmos o trecho praiano, quando tivemos que enfrentar uma comprida e velha ponte de madeira, quase uma pinguela. O Luzivan logo notou que parte da proteção lateral esquerda da ponte havia caído. Pediu-me para estacionar o carro, enquanto iria verificar o que ocorrera.

 

Lá, ele inspecionou um pedaço da cobertura do piso esquerdo, que também havia sido arrancado. Fez-me sinal para que conduzisse o veículo para a ponte. Com certo sobrosso, venci a parte que havia sofrido o dano. Novamente no carro, o guia nos informou que um carro havia caído da ponte, no trecho danificado. Senti-me como se houvesse saltado uma fogueira, e não somente atravessado uma velha e estreita ponte de madeira. Repousando à sombra de uma árvore, avistei uma antiga jardineira ou ônibus gaiola, com seus bancos inteiriços, que no Piauí recebia o nome de “horário”, que cheguei a usar em viagem a Barras, quando, em minha infância, ia passar férias escolares nessa cidade de meus avoengos e parentes.

 

Para finalizarmos o passeio, nos dirigimos à lagoa do Paraíso, que fica apenas a dois ou três quilômetros da cidade de Jijoca, no povoado Córrego do Urubu. Não vi o córrego, entretanto tive a oportunidade de assistir a uma magnífica coreografia aérea de urubus, em que a sua plumagem negra se recortava contra a empanada azul do céu. Um deles, destacando-se dos demais, fez uma soberba planação, em que deslizou lateralmente, como se estivesse brincando ou se exibindo artisticamente.

 

Ficamos no restaurante Chez Loran, cujas mesas ficam colocadas na praia da laguna. São armadas algumas redes de fios de náilon, com parte dentro da água. A lagoa do Paraíso é, com efeito, uma paradisíaca e grande lagoa, de beleza irretocável. A margem em que ficamos é toda constituída de alva, fofa e delicada areia, que proporciona indizível prazer ao toque dos pés. As carnaubeiras, de talhe esbelto e flexível, com suas farfalhantes palmas, davam um toque sutil de exotismo ao ambiente.

 

Vê-se, na margem oposta, a vegetação típica do lugar, as poucas casas, e, ao longe, a brancura e encantamento das dunas. A água toma tons que variam do verde ao azulado, dependendo do local para onde olhemos. Sua temperatura é agradável, nem fria nem quente. Límpida, vê-se, sem dificuldade, o seu fundo, todo formado pela mesma macia areia de sua orla. Preferimos almoçar ao ar livre, desfrutando a beleza do ambiente natural, ainda bem preservado, ao salão climatizado. Fizemos o retorno sem necessidade do guia, que já fora liberado.

 

A viagem de volta foi contínua, sem necessidade de nenhuma parada. Senti-me já quase com um pé dentro do Piauí, quando avistei as enormes e características pedras da cidade de Chaval, já perto da divisa. Ao longe, contra a luz solar, as rochas pareciam formar figuras estranhas ou esculturas surreais, oníricas, recortando-se contra o céu, que já começava a adquirir cores cambiantes, sob o influxo do início do crepúsculo. À saída da urbe, vi de perto uma dessas gigantescas pedras. Parecia ter a pele áspera e escura de um paquiderme, inerme, enorme, espojado na aridez da caatinga. Uns mandacarus, intratáveis e ásperos, como o cacto do poeta Manuel Bandeira, pareciam sentinelas, a resistir na sequidão adusta da pedra, que lhes servia de guarita.