Graça de Carvalho morreu. Era minha amiga. Grande poetisa. Filha de Farias de Carvalho, autor de minha preferência. Graça andava deprimida, tinha 57 anos. Se tanto. Eu adiava visitá-la, em Niterói. Devo a ela um livro raro, de Farias, «Canção de bem amar...».
O primeiro poema de «Pássaro de cinzas», de Farias de Carvalho, que deu nome ao livro, e é assim seu «Prólogo»:
Desses mortos ocasos esquecidos
chega-me agora o pássaro de cinza;
de ontem são suas asas, de silêncio
o seu bico pousado sobre a ponte
entre o vencido vale e o bosque a entrar,
bica-me o peito onde marés antigas
jogam restos de mastros e fantasmas
desses velhos piratas que ficaram
tatuados na penumbra de olhos idos.
E sem saber talvez do inútil intento
ninha o vazio do momento, à espera
da comida do sonho que ontem davam
essas mãos que se foram, consumidas
nesses mortos ocasos esquecidos...
Encontrei a nova edição de «Pássaro de cinza» na livraria do Aeroporto, de volta ao Rio. Eu antes dispunha de um xeróx feito na Biblioteca Pública do Amazonas, há décadas. Era 28 de dezembro de 2000, o avião lotado dos que vinham para o Reveillon, um clima de «fim de siècle » pairava no ar. A meu lado um cavalheiro estrangeiro lia um livro, com gravuras. Sério, aborrecia-se cada vez que eu saía de meu lugar para andar, estirar as pernas, no corredor do aeroplano. Irritava-se com minha incontinência. Em pouco o calor da manhã clara de Manaus foi substituído por um tempo chuvoso, feio, frio, escuro, de Brasília. E eu voltava, voltava, continuava, continuava lendo, relendo, o poeta, o professor Carlos Farias Ouro de Carvalho. E vi os 35 anos se passando, desde que o vi pela última vez, no Colégio Estadual do Amazonas. Farias parecia com Orson Welles, gordo, moreno, os olhos esbugalhados, poderosos, carregados de genialidade, sorriso delirante, dramático, gestos largos, voz tonitruante, grave, minha leitura prosseguia, eu revia todos aqueles poemas de meu Professor de Literatura, de vida, moreno, gordo, talentoso, imponente, belo, que faleceu em Niterói, fazia “cartomancia clínica” em Niterói, dizem, inventava sonhos, futuros, inventariava profissões, ressuscitava esperanças mortas, profetizava, arregimentava os signos do zodíaco e orquestrava novas configurações prestidigitadas. Farias, figura extraordinária, agora reeditado. Quanto vale a sua poesia? Quem sabe. Ele faz parte do quarteto de ouro: Norões, Bacellar, Tufic e Farias, os quatro grandes da poesia do Amazonas, que fazem parte de meu arcabouço intelectual, tão improvisado. Sou um provinciano. Manaus é para mim minha pátria espiritual, mas não parece. Quando vou a Manaus só permaneço 3, 5 dias. Nunca mais voltei. Carrego Manaus dentro de mim. Não preciso estar lá. Farias faz parte de minhas mais antigas leituras. Me deu aula de vida, de alegria, de charme, de dignidade, nobreza. Ninguém tão elegante quanto ele, no gesto largo da mão gorda, na inclinação da face, na inflexão da voz, nas metáforas exatas, Farias cantava as aulas, declamava, não reclamava (nunca nos repreendeu), me ensinou a Poesia, a Ousadia, a Superação, foi um pai, um amigo, um exemplo, um grande exemplo de educador, no mais elevado sentido desse incômodo e errático termo, e hoje escrevo estas notas, vindas de longe, do tempo em que Farias exercia sobre a minha consciência de adolescente um papel mítico, imortalizado na arquitetura de seu «Pássaro de cinza», dedicado ao Dr. João Veiga, que relembro na sua bela casa da Getúlio Vargas, casa que não mais deve existir, aliás nada mais existe, nem Farias, nem Graça, tudo desapareceu no fundo da noite, dos anos, e se, na hora de minha morte, as imagens de minha vida se projetarem na minha consciência que se extingue, virão como um pássaro. Mas liberto desse passado de cinzas.