O morro da casa grande

23. Gente que mandava

 Dílson Lages Monteiro

Coronel era gente que mandava! Marciano se distraia com as ideias na boleia, atento ao que subitamente se desenhava na paisagem de casas de pau-a-pique, perdidas no meio do mato, onde cães, diante da máquina que andava, latiam nos terreiros ou corriam inutilmente atrás do automóvel. Gente que mandava. Mas conhecia muita gente a quem se chamava de coronel e não tinha terra nem debaixo das unhas. O Lourival do mercado. Nem o nome mesmo dele se sabia. Dizia-se apenas Lourival do Mercado, porque era açougueiro, isso era, do mercado.
 
Impacientava-lhe a dúvida, como os grilos da Aurora, escondidos nos cantos das portas ou nos minúsculos buracos dos ladrilhos de tijolos; os grilos que caçava, para queimá-los no fogo da lamparina até secarem. Os grilos zumbindo a noite inteira, zumbindo para encompridar a escuridão e retardar as frestas de luzes na cumeeira da casa. Zumbido que ia e vinha, mais alto, mais baixo. O caminhão cortava a areia, fazia o barulho dos grilos, o barulho da dúvida, o barulho dos conceitos indefinidos.
 
Os grilos do pensamento de Marciano regurgitavam na cabeleira grisalha de Alberto Pires; até parecia que o menino ainda estava ao lado a repetir a pergunta. O que era mesmo um coronel? O velho arrebatou o vento com o chicote que trazia à mão, atirando-o com força em direção aos porcos que disputavam um sabugo de milho. Coronel, gente que mandava. Mandava em gente, em bichos e na própria terra.
 
Ele conhecia bem os sentidos dessa palavra, mas a substância dela perdera o gosto. Não mais desejava mandar no que fosse. Que mandassem os filhos, os netos. Queria somente – e não cansava disso repetir - saborear o tempo que lhe sobrava... Vivia mastigando isso:
 
- Já não decido mais nada. Vivo para viver!
 
O caminhão certamente já cruzara muitas curvas a essa altura. O barulho do motor, um vago ruído aos ouvidos mais afinados da fazenda, e Barras do Marataoã, o destino do GMC, também se configurava sob a forma de grilos. À noite eles se ocultavam nos matinhos quase rentes ao chão numa cantiga que era a própria noite. Na escuridão insone, importunavam como as incertezas do tempo. Barras do Marataoã, em seu desenho de poucas ruas, era sim como grilos.
 
Alberto bateu com os dedos sobre a fronte, esfregou os olhos; pequena irritação se apoderava de si. Igual a outras vezes, ela vinha do vazio, das inexplicáveis buscas de respostas para o dia de amanhã. Mas por que se ocupar com dúvidas sobre o futuro, se o seu já chegara?
 
Ainda que buscasse paz de espírito, a fim de prolongar cada dia, duvidava que os bisnetos conseguissem viver do campo. Gente demais e tão pouco a dividir. Sobravam-lhe 10 mil hectares e muita gente para herdar. A vida seria nas cidades – vida de escolas, eletricidade, automóveis, rádio. Não iriam querer disputar espaço com árvores, bichos e escuridão.
 
Barras ainda seria grande. Muitas ruas, muitas casas, mas Alberto desacreditava que ela conseguisse reviver os tempos de Firmino e de Joaquim Pires. Barras bem crescida em ruas, mas bem menor em expressão. Assim já era desde o golpe de Getúlio. A cidade foi perdendo o prestígio e agora começava a parecer uma capoeira – desde o golpe, desde a perseguição implacável do coronel do Rio Grande aos Pires. Acaso o golpe não ocorresse, Firmino seria nome certo à presidência. Nome certo.
 
Desiludido com as tramas que se urdiam na cidade, com as quais nunca se acostumava, por mais que elas fossem banais e corresse no sangue os fins da UDR, o velho pedia aos filhos, em conselho, nas reuniões familiares que rareavam sem razões de seu conhecimento:
 
- Não se metam em política. É coisa traiçoeira. Em Barras, política é para os maus, os perversos, os sem escrúpulos. Os bons são destruídos moralmente, por mais que façam.
 
A indignação do coronel eletrizava a areia, suspensa pelo vento em redemoinhos. O ar circulando, circulando, até aparentava transfigurar a raiva, transfigurar a desesperança de uma cidade pacífica e de oportunidades. Quem tinha interesse nisso? Aos que mandavam, o poder bastava.
 
Não queria mesmo ninguém seu em política. Ninguém metido nas confusões de Barras. Queria médico, advogado, engenheiro. Até fazendeiro tolerava se o destino assim escrevesse. Menos político. Barras era um galinheiro de brigas, desmoralização e interesses. Ocupar a vida nisso para quê? Preferível a paz; preferível até a pobreza.
 
Alberto sacudia a poeira dos pensamentos, quando se surpreendeu diante da mansidão que se avizinhava, quando se surpreendeu com o reflexo do sol sob os cabelos brancos de Monsenhor Uchoa, que chegava para as desobrigas, na ânsia da conversa regada ao café de dona Alzira. Sequer o Monsenhor desceu do cavalo,  inquieto para falar, disparou:
 
- Boa tarde, coronel! Coronel, pobre só se livra de injustiça e perseguição em Barras quando morre. Parece que juiz, delegado, vereador e tudo que é autoridade, menos padre, só gosta é de dinheiro.
 
Alberto nem quis tomar conhecimento do resto da história. De aflições, estava cheio. Silenciou. Lembrou-se de que era coronel; coronel de carreira tirada, mas coronel, e tratou exclusivamente de dar as boas-vindas:
 
- Pois vamos ao café para esfriar as ideias!
 

Foto de 1957: Busto do Marechal Firnino Pires Ferreira, na praça senador Joaquim Pires

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