O homem e sua hora, de Mário Faustino
Por Carlos Evandro Martins Eulálio Em: 17/04/2011, às 10H30
Prof. Carlos Evandro M. Eulálio
NOTA PRÉVIA.
Este texto é um roteiro de leitura da obra “O Homem e sua Hora,” de Mário Faustino. Com ele desenvolvemos uma palestra no Curso Lettera – Anglo Vestibulares e Colégio Integral, Sistema Anglo de Ensino, no dia 20 de agosto de 2000. Ainda nesse ano, ministramos a mesma aula nos seguintes estabelecimentos de ensino desta capital: Instituto Dom Barreto (onde lecionamos), Colégio Sinopse (sob a coordenação do Prof. Reginaldo Brandão), Educandário Santa Maria Goretti e Colégio Projúris (auditório da OAB de Teresina, em 17-09-2001)
Ultimamente, este trabalho, no todo ou em parte, equivocadamente veicula na Internet e em outros meios de comunicação escrita, como sendo de autoria de outro(s) autor(es), quando na verdade o seu conteúdo tem como fonte bibliográfica principal a nossa Seleta comentada, sob o título “Literatura Piauiense em Curso: Mário Faustino”, publicada pela Editora Corisco / APL, em segunda edição no ano de 2000 e mais recentemente neste portal sob o título “O poeta Mário Faustino”. Nesta versão, procedemos pequenas alterações, com a pretensão de atualizá-lo.
I – BIOGRAFIA DO POETA
Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina, no dia 22 de outubro de 1930. Deixou o Piauí aos 10 ano de idade, passando a residir em Belém do Pará. Ali, com Benedito Nunes e Haroldo Maranhão fundou a revista literária Encontro (1948). Ainda em Belém, foi chefe de redação do Jornal “A Folha do Norte”. Residindo posteriormente no Rio de Janeiro, a partir de 1956, desenvolve intensa atividade jornalística, como editorialista do Jornal A Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil. No Suplemento Literário do Jornal do Brasil (SDJB), criou a página Poesia-Experiência, dedicada exclusivamente à Poesia. Para Benedito Nunes, o lema de Poesia-Experiência, “repetir para aprender, criar para renovar traduzia o sadio empirismo que orienta as investigações de longo alcance. Ao propósito teórico da página concernente ao conhecimento do fenômeno poético, estética e historicamente considerado, juntava-se à finalidade de ensinar poesia.” (NUNES, 1966, p. 4)
Essa página circulou de 23 de setembro de 1956 a 1º de novembro de 1958 e era dividida em seções, assim denominadas: Poeta Novo (destinada a divulgar poemas de autores jovens) – O Melhor em português (dedicada à publicação de clássicos portugueses) É preciso conhecer (divulgava poetas modernos estrangeiros, através de traduções) Clássicos vivos (apresentava textos de poetas antigos de épocas e nacionalidades diversas) Subsídios de crítica , ou Textos Pretextos para discussão (teoria poética de poetas críticos, como Eliot, Pound e outros) Pedras de toque (fragmentos selecionados pelo poeta, os quais considerava exemplificadores da linguagem de alto nível) – Diálogos de oficina, Fontes e correntes da poesia contemporânea e Evolução da Poesia Brasileira (as três séries de artigos ensaísticos). (1)
II – PRODUÇÃO LITERÁRIA DO AUTOR
Mário Faustino foi um polígrafo. Escreveu sobre vários assuntos. Produziu poesias, contos, crônicas, ensaios de poética, críticas literárias e cinematográficas, tendo ainda traduzido poetas de várias nacionalidades: franceses, espanhóis, ingleses e norte-americanos.
O Homem e sua Hora é o único livro publicado em vida do poeta, pela Editora Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1955. No Balanço sobre a página que dirigia no Jornal do Brasil, Mário Faustino referiu-se a O Homem e sua hora como uma “espécie de relatório de meia dúzia de anos de aprendizado poético” (Poesia-Experiência, p. 278).
PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS:
- Poesia de Mário Faustino (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966, org. por Benedito Nunes) Constam além do livro O Homem e sua Hora alguns fragmentos que constituem parte do chamado poema longo, preconizado pelo poeta;
- Cinco ensaios sobre poesia de Mário Faustino (Ensaios sobre poética, org. por Assis Brasil, Rio de Janeiro – Edições GRD, 1964);
- Poesia-Experiência (Ensaios de poética e estudos sobre poesia. Org. por Benedito Nunes, São Paulo, Editora Perspectiva, coleção Debates, 1977)
- Poesia Completa – Poesia Traduzida. São Paulo, Editora Max Limonad, 1985. Nessa edição encontramos um longo poema que o poeta deixou incompleto: “A Reconstrução”. Esse poema teria 8 poartes. Apenas a primeira foi feita.
- Os melhores poemas de Mário Faustino (Seleção de Benedito Nunes, publicada pela Global Editora, São Paulo, 1985);
- Evolução da Poesia Brasileira (Estudo crítico de nossa poesia colonial, de Anchieta a Santa Rita Durão – obra incompleta, com apresentação de Benedito Nunes, publicada pela Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador - BA, 1993);
- O Homem e sua Hora e outros poemas, Mário Faustino.(Pesquisa e organização de Maria Eugênia Boaventura. Edição Companhia das Letras, 2002. Inclui além dos textos de O Homem e sua hora, poemas esparsos de Faustino, publicados na imprensa, a partir de 1948, e inéditos cedidos por Benedito Nunes). Inserem-se nessa obra o ensaio de Maria Eugênia Boaventura, “Um militante da poesia” e o depoimento crítico-literário de Benedito Nunes: “A poesia de meu amigo Mário.”
- De Anchieta aos Concretos, Mário Faustino (Organização de Maria Eugênia Boaventura, o livro reúne textos sobre a poesia brasileira de quatro séculos – São Paulo, Companhia das Letras, 2003);
- Artesanatos de Poesia: Fontes e correntes da poesia ocidental (Reúne textos de Mário sobre poetas da modernidade, como Edgar Allan Poe, Baudelaire, Pound e outros; organização de Maria Eugênia Boaventura, São Paulo, Companhia das Letras, 2004).
III – ESTILO DE ÉPOCA (SITUAÇÃO HISTÓRICO-LITERÁRIA)
No quadro literário brasileiro, Mário Faustino pertence ao grupo de poetas que se situam entre a geração neomodernista de 1945 e as experiências vanguardistas da década de 1950. Manuel Bandeira e Walmir Ayala denominam esse momento de “Poesia até agora & Vanguardas”. Para Assis Brasil, esses poetas, “conformados” entre a geração pós-modernista (1945) e as experiências de vanguarda, pagaram um tributo demasiado longo ao que denomina “Tradição da imagem.”
Mesmo durante o período de vigência das vanguardas brasileiras (Concretismo, 1956; Tendência, 1957; Neoconcretismo, 1959; Práxis, 1962; Violão de Rua, 1962; Poema Processo, 1967 e Tropicalismo, 1968 – sendo estes dois últimos movimentos deflagrados após a morte de Faustino), os poetas dessa geração, embora receptivos aos avanços da arte poética, absorvendo tranquilamente os experimentos dessas vanguardas, mantêm-se irredutíveis quanto ao modo de produção, isto é, absolutamente autônomos na resolução de uma experiência pessoal marcada por um lirismo metafísico e acima de tudo metafórico, dentro de uma evolução nitidamente linear e inteiramente independentes da geração de 1945. São poetas desse movimento: Mário Faustino, Homero Homem, Walmir Ayala, Alberto Costa e Silva, Marly de Oliveira, Affonso Ávila, Affonso Romano de Sant’Anna, dentre outros. (BRASIL, 1973, p.25 e BANDEIRA; AYALA, 1996, p.129).
IV – FASES LITERÁRIAS DO POETA. Convém mencionar que o estudo das fases literárias de Faustino, embora tenham como ponto de partida o trabalho de Augusto de Campos, “Mário Faustino, o último “Verse Maker”, de 1978, na Seleta que organizamos e que foi publicada pela Editora Corisco e Academia Piauiense de Letras, (EULALIO, 2000, p. 43), por circunstâncias didáticas, propomos:
1ª FASE: Inicial ou pré-moderna. Anterior ao Concretismo. Poemas publicados entre 1948 e 1955. Augusto de Campos denomina essa fase “A da integração da tradição no moderno”. Nela o autor inclui o livro “O Homem e sua Hora” e mais 14 outros poemas que constituem a primeira parte dos “Esparsos e Inéditos” (divulgados por Benedito Nunes após a morte do poeta).
CARACTERÍSTIAS da 1ª Fase: Formas poemáticas tradicionais: canção, ode, balada, soneto; os poemas em geral são expressos em sonetos; predominam os versos decassílabos, refletindo a preocupação com o metro tradicional; linguagem metafórica, com repetições anafóricas, elipses e paronomásias; exercício reiterado da função emotiva da linguagem.
2ª FASE: Moderna ou experimental. Posterior ao Concretismo. Poemas escritos entre 1956 e 1958. Essa fase consta de apenas oito poemas ou fragmentos (2ª parte dos Esparsos e Inéditos), sendo o primeiro poema intitulado 22.10.1956 (data de aniversário do poeta).
CARACTERÍSTICAS da 2ª Fase: Formas livres, poesia espacial; objetividade; ruptura com a fase anterior; emprego da fragmentação; associação sem conexões sintáticas (livre combinação de vocábulos); preferência pela coordenação (parataxe); poesia sob a influência do Concretismo, cujas formas livres substituem o soneto.
3ª FASE: Pós-Moderna a da integração do moderno na tradição – conforme Augusto de Campos. Compreende os poemas escritos entre 1959 e 1962. Essa fase podemos também denominá-la “Fase dos fragmentos.”
CARACTERÍSTICAS da 3ª Fase: Produção de fragmentos; fase de definição estética do autor; predominam poemas de circunstância; fragmentos sem títulos; presentes ainda temas das fases anteriores: amor, morte, tempo e eternidade; esboço do projeto literário e existencial do poeta: o poema longo. Os textos refletem uma obra em progresso, à qual deveria acompanhar a vida do poeta até a morte, daí o sentido do termo “poema longo”, atribuído pelo autor. Pretendia reunir um bom número de fragmentos e publicá-los de cinco em cinco anos.
V – ESTILO INDIVIDUAL
A linguagem poética de Mário Faustino é altamente elaborada, com senso de disciplina e ritmo preciso. Por essa razão é tida por alguns como hermética. Ao construir poemas, em formas tradicionais, a exemplo dos bons poetas da língua, entendia a forma como possibilidades de novas estruturas. Daí a capacidade que possuía de transitar da forma tradicional para variantes poemáticas próprias. Exemplo do que afirmamos são suas experiências com o soneto. Manejou o enjambement com muita fluência. Mário Faustino foi um poeta cuja experiência criadora alternou-a com a experiência reflexiva de crítico, produzindo por conseguinte inúmeros poemas metalinguísticos que questionam o fenômeno da criação literária. Tinha predileção pela metáfora e por construções anafóricas. Valoriza o emprego de substantivos e verbos. Por contenção verbal, restringe o emprego de adjetivos.
VI – A OBRA “O HOMEM E SUA HORA”
O livro constitui-se de 22 poemas, incluindo o soneto “Prefácio” que antecede aos demais textos. A obra é dividida em três partes:
1ª parte – DISJECTA MEMBRA (título inspirado nas palavras de Horácio, célebre poeta latino, que viveu no ano 65 a.C., autor do famoso tratado de poesia “Arte Poética”. A frase original, retirada da obra Sátiras é: “Disjecti membra poetae: “Os membros do poeta esquartejado”, completáveis assim: não seriam reconhecíveis se lhes desfizéssemos o ritmo e a disposição da frase.”
Compõe-se de 13 poemas: Mensagem, Brasão, Noturno, Vigília, Legenda, Romance, Vida toda linguagem, Estrela Rocha, Alma que foste minha, Solilóquio, Mito, Sinto que o mês presente me assassina e Haceldama.
2ª parte – SETE SONETOS DE AMOR E MORTE (todos em decassílabos e escritos à maneira inglesa: os quatorze versos são compactados numa só estrofe): O mundo que venci deu-me um amor, Nam sibyllam (do latim, é certo Sibila), Inferno, eterno inverno, quero dar, Agonistes (do grego, lutador, atleta), Onde paira a canção recomeçada, Ego de Mona Kateudo (do grego pelo latim: e eu jazo sozinha), Estava lá Aquiles que abraçava.
3ª parte – Constituída por um único texto que a que deu o título à obra. Trata-se do poema O homem e sua hora. Contém 235 versos, decassílabos na quase totalidade. É a síntese do projeto poético de Mário Faustino. Determinados trechos são difíceis de compreendê-los, pois exigem do leitor conhecimentos sobre mitologia, literatura bíblica e greco-latina. Trata-se de um longo diálogo do poeta com o mundo, sugerindo mais do que afirmando. A intertextualidade se faz presente através de referências aos livros do Antigo e do Novo Testamento, passando por Homero, Safo, Confúcio, Virgílio, Homero, Dante, Pound, Mallarmé, Eliot, Jorge de Lima etc. Os versos surgem numa cadeia sintática descontínua e reticente, instaurando no texto o pensamento fragmentário e analógico, tornando o tom ambíguo cada vez mais saliente no poema. É também propósito do autor enunciar, ao longo do poema, princípios da linguagem poética que devem nortear os seus versos, privilegiando os pressupostos de Ezra Pound: fanopeia (atribuição de imagens à imaginação visual), logopeia (a dança do intelecto entre palavras) e melopéia (musicalidade).
VII – PRINCIPAIS TEMAS DO LIVRO “O HOMEM E SUA HORA”
O autor desenvolve os seus temas de modo antagônico. Para Benedito Nunes, “Amor e morte, tempo de eternidade, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e impureza, Deus e o homem, passam e repassam, sob diferentes nomes e em diferentes situações, nos versos do livro O Homem e sua Hora.” (NUNES, 1966, p. 5).
O tempo: misto de efêmero e de eterno, de ilusão e realidade. Há também o tempo que destrói e consome nossa existência, em momentos de solidão e angústia.
Sua poesia sempre espelha a consciência de um estado em crise. Seja no âmbito literário (ex.: o soneto Prefácio), seja na esfera pessoal (ex.: o soneto O mundo que venci deu-me um amor).
A poesia, o poeta e o poema são temas presentes em todo o livro. Poesia com fins didáticos. O poeta ora é visto como artista e artesão, ora como cantor inspirado e fecundador. O poema é concebido como produto da inspiração e do intelecto.
Há também momentos em que o autor, a exemplo de João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, teoriza sobre a poesia dentro do próprio poema, estabelecendo a fusão entre as funções poética e metalinguística. É oportuno ressaltar que todos o temas assumem diferentes matizes ou subtemas.
NOTAS
1. Sobre esses textos, vide estudo detalhado do Prof. Benedito Nunes, na introdução à obra Poesia Experiência, de Mário Faustino, publicada pela Editora Perspectiva, São Paulo, 1977, p. 7 a 24.
VIII – POEMAS DO LIVRO “O HOMEM E SUA HORA” (SELETA)
PREFÁCIO
Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou .
Seus temas a paráfrases do touro,
A traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.
BRASÃO
Nasce do solo sono uma armadilha
Das feras do irreal para as do ser
- Unicórnios investem contra o Rei.
Nasce do solo sono um facho fulvo
Transfigurando a rosa e as armas lúcidas
Do campo de harmonia que plantei.
Nasce do solo sono um sobressalto.
Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos
Corcéis da fuga de ouro que implorei.
E nasce nu do sono um desafio.
Nasce um verso rampante, um brado, um solo
De lira santa e brava – minha lei
Até que nasça a luz e tombe o sonho,
O monstro de aventura que eu amei.
MENSAGEM
Em marcha, heroico, alado pé de verso,
busca-me o gral onde sangrei meus deuses:
conta às suas relíquias, ontem de ouro,
hoje de obscura cinza, pó de tempo,
que ele os venera ainda, o jogral verde
que outrora celebrou seus milagres fecundos.
Dize a eles que vinham
tecer silentes minha eternidade
que a lava antiga é pura cal agora
e queima-lhes incenso, e rouba-me farrapos
de seus mantos desertos de oferendas
onde possa chorar meu disfarce ferido.
Dize a eles que tombem
Como chuvas de sêmen sobre campos de sal
sem mancha, mas terríveis
que desçam sobre a urna deste olvido
e engendrem rosas rubras
do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho.
Segue, elegia, busca-me nos portos
e nas praias de Antanho, e nas rochas de Algures
os deuses que afoguei no mar absurdo
de um casto sacrifício.
Apanha estas palavras do chão túmido
onde as deixo cair, findo o dilúvio:
forma delas um palco, um absoluto
onde possa dançar de novo, nu
contra o peso do mundo e a pureza dos anjos,
até que a lucidez venha construir
um templo justo, exato, onde cantemos.
SETE SONETOS DE AMOR E MORTE
I – O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR
O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
II– NAM SIBYLLAM
Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus tenros anos;
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Lápides eloquentes de um passado
Ou de um futuro arguido pelos anos;
Lá cândidos leões alvijubados
As brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço me enrolando
Em turbilhões de peixes e presságios
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me apontavam.
III – INFERNO, ETERNO INVERNO, QUERO DAR
Inferno, eterno inverno, quero dar
Teu nome à dor sem nome deste dia
Sem sol, céu sem furor, praia sem mar,
Escuma de alma à beira da agonia.
Inferno, eterno inverno, quero olhar
De frente a gorja em fogo da elegia,
Outono e purgatório, clima e lar
De silente quimera, quieta e fria.
Inverno, teu inferno a mim não traz
Mais do que a dura imagem do juízo
Final com que me aturde essa falaz
Beleza de teus verbos de granizo;
Carátula celeste, onde o fugaz
Estio de teu riso - paraíso?
IV - AGONISTES
Dormia um redentor no sol que ardia
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e de açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roía
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e de açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roía
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.
V – ONDE PAIRA A CANÇÃO RECOMEÇADA
Onde paira a canção recomeçada
No capitel de acanto de teu lar?
Onde prossegue a dança terminada
Nas lajes de meu tempo de chorar?
Rapaz, em minhas mãos cheias de areia
Conto os astros que faltam no horizonte
Da praia soluçante onde passeia
A espuma de teu fim, pranto sem fonte.
Oh juventude, um pálio de inocência
Jamais se estenderá sobre outra aurora
Mais clara que esta clara adolescência
Onde o lupanar da noite hoje devora:
Que vale o lenço impuro da elegia
Sobre teu rosto, lúcida alegria?
No capitel de acanto de teu lar?
Onde prossegue a dança terminada
Nas lajes de meu tempo de chorar?
Rapaz, em minhas mãos cheias de areia
Conto os astros que faltam no horizonte
Da praia soluçante onde passeia
A espuma de teu fim, pranto sem fonte.
Oh juventude, um pálio de inocência
Jamais se estenderá sobre outra aurora
Mais clara que esta clara adolescência
Onde o lupanar da noite hoje devora:
Que vale o lenço impuro da elegia
Sobre teu rosto, lúcida alegria?
VI – EGO DE MONA KATEUDO
Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminasse.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormindo é claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminasse.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormindo é claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria
VII – ESTAVA LÁ AQUILES, QUE ABRAÇAVA
Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que o atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
LEGENDA
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.
Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia —
Jorros de luz na fuga de meu dia —
E mudo sou para contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
O reino, a lenda, a glória desse dia.
ROMANCE
Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses:
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória,
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servo
De outra Festa mais Terrena –
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses:
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória,
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servo
De outra Festa mais Terrena –
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte
O HOMEM E SUA HORA*
(Fragmentos)
...Et in saecula saeculorum: mas
Que século, este século – que ano
Mais-que-bissexto, este –
Ai, estações –
Esta estação não é das chuvas, quando
Os frutos se preparam, nem das secas,
Quando os pomos preclaros se oferecem.
(Nem podemos chamá-la primavera.
Verão, outono, inverno, coisas que
Profundamente, Herói, desconhecemos...)
Esta é outra estação, quando um mês tomba,
O décimo-terceiro, o Mais-que-Agosto,
Como este dia é mais que sexta-feira
E a Hora mais que sexta e roxa.
........................................................................
Nox ruit, Aenea, tudo se acumula
Contra nós, no horizonte. As velas que ontem
Acendemos ou brancas enfunamos
O vento apaga e empurra para o abismo.
........................................................................
Em cemitérios amorosos, eu,
Pigmalion, talharei a nova estátua:
Estátua de marfim, cândida estátua,
Mulher primeira, fêmea de ar, de terra,
De água, de fogo – Hephaistos, sobe, ajuda-me
A compor essa estátua; fácil corpo,
Difícil Face, Santa Face – falta
O sopro acendedor de tua esperta
Inspiração...
...........................................................................
Pronta esta estátua, agora, os deuses e eu
Miramos o milagre: branca estátua
De leite, gala, Galateia, límpida
Contrafação de canto e eternidade...
(,,,) Tomba a noite,
Mas pronta é nossa estátua, armada e tão
Plácida, prestes, pura quanto Pallas
Bordando seus bordados sem brandir
Égide aterradora. Parte, estátua,
Na terra cor de carne as vias fremem
Duras de sangue e seixos – vai aos homens
Ensinar-lhes a mágica olvidada:
Ensinar-lhes a ver a coisa, a coisa,
Não o que gira em torno dela, (...)
Vai, estátua, levar ao dicionário
A paz entre palavras conflagradas.
Ensina cada infante a discursar
Exata, ardente, claramente: nomes
Em paz com suas coisas, verbos em
Paz com o baile das coisas, oradores
Em paz com seus ouvintes, alvas páginas
Em paz com os planos atros do universo –
.....................................................................
(...) Retorna a mim, que passarei mil anos
A contemplar-te, ouvir-te, cogitar-te.
Vênus fará de teu marfim fecunda
Carne que tomarei por fêmea, carne
Feita de verbo, cara carne, mãe
De Paphos, filho nosso, que outra ilha
Fundará, consagrada a tua música.
Teu pensamento, paisagem tua.
Ilha sonora e redolente, cheia
De pios templos, cujos sacerdotes
Repetirão a cada aurora (hrodo,
Hrododáktulos Eos, brododáktulos!) **
Que Santo, Santo, Santo é o Ser Humano
-Flecha partindo atrás de flecha eterna
Agora e sempre, sempre, nunc et semper...
NOTAS
1. Procuramos nessa montagem de fragmentos encontrar nos interstícios de suas metáforas o propósito do autor: enunciar ao longo do texto princípios de linguagem artística, inerentes ao poeta, ao seu tempo e à obra literária em si. Aí estão metaforicamente noções de poética como: conceito e função da poesia; o poema como fonte de sabedoria, o poeta e sua missão pedagógica perante os homens e o mundo.
** (hrodo,
Hrododáktulos Eos, brododáktulos!) – do grego, tradução corrente em português: “rosa, aurora de dedos cor de rosa, de dedos cor de rosa.” Segundo a mitologia grega, Eos é a aurora personificada, adorada pelos povos indoeuropeus, pertence à primeira geração divina , a dos Titãs, como filha de Hiperion e Teia, irmã de Hélio (sol) e de Selene (lua). Com seus dedos cor de rosa (rododaktylos) , como a chama Homero, é ela que abre todas as manhãs as portas do céu para o carro do sol. Assim também será o poema, iluminando com sabedoria a mente dos homens nunc et semper (agora e sempre). (EULALIO, 2000, p. 91)
BIBLIOGRAFIA
AYALA, Walmir. Poesia agora & vanguardas; Antologia dos Poetas brasileiros / Poesia da fase moderna, volume 2, org. de Manuel Bandeira e Walmir Ayala. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 129.
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