foto: Google Imagens
foto: Google Imagens

 

Certo dia, o pai chegou com uma k7. A tarde começava a ensolarar, como a maioria das tardes de minha meninice. Também não era novidade o que ele trazia, junto com o pão e o presunto: na velha casa do Bairro de Fátima, ainda com varanda e telhado, sempre tinha música tocando no CCE. Às vezes em elepês, noutras nas fitas que rodavam e rodavam até aquele estalinho surdo — tac — anunciar: precisa virar o lado.

Não ouso afirmar fosse segunda ou quinta, terça, sábado, quiçá uma perdida quarta — dia vadio não era, senão a loja e a padaria estariam fechadas. Também não tenho certeza se conseguiu a fita numa daquelas trocas que vivia fazendo: com esses negocinhos, como dizia rindo, trouxe gaiolas, uma mobilete, canarinhos, um jogo de xadrez imantado, uma espingarda (que fez a mãe encrespar e rapidinho ele passou adiante)... Bem, afastadas essas inúteis conjecturas, volto ao pai. Que acaba de entrar com o pão, o presunto, e a k7.

Moço engraçado esse aí, comento, apontando pro sujeito de boina vermelha, óculos escuros e barbicha na capa. “Ah, esse era o Raul, Raul Seixas”, o pai explica, enquanto a mãe termina de passar o café. “Tocava rock”, diz, cortando o pão ao meio para encher o miolo de margarina. “Cantava pra dedéu”, ela acrescenta, o café escoando da leiteira para a Aladdin terracota.

Olho os raios-de-sol se equilibrando no arame da cerca. Olho, pondero os verbos paternos, tiro conclusões.   

Tomamos o café em silêncio: o rádio transmite a Consagração.

Daí a pouco, como de costume, saímos para uma voltinha. Daquela vez, contudo, Raul — o que tocava rock e cantava pra dedéu — vem de carona no toca-fitas do Chevette.

Pra onde? Ah, indiscreta leitora, isso fica para outra crônica ou, se acaso conhece minha terra natal, fica por conta da sua especula imaginação. Mas por que cargas d'água foste lembrar disto agora? Ora, inconveniente leitor, não sabes que a memória, caprichosa como é, de forma inesperada nos brinda com recuerdos de viejos tiempos? Se bem que...

Se bem que não foram tão inesperadas assim. Essas e outras lembranças me ocorreram quando assistia Raul Seixas: eu sou. A série, em oito bem produzidos e interessantes capítulos, mostra os altos e os (muitos) baixos da carreira daquele que é considerado o pai do rock brasileiro.

Naquela tarde em que saímos a passear, o álbum Gita como trilha sonora, eu devia ter uns dez anos. Raulzito, portanto, já não estava mais nesta galáxia, abduzido que fora, anos antes e definitivamente, pelo moço do disco voador. Justo, pois, que não me recordasse dele. Até então, ele era apenas (?) a voz que cantava Plunct Plact Zum na quarta faixa do Festa das Crianças, uma coletânea que o pai comprara quando eu ainda nem sabia posicionar a agulha no disco.

Os anos, infelizmente, voaram na velocidade da luz. Sem selo e registro, sem carimbo, sem avalição e rótulo.  

Agora, enquanto ali na praça uma banda desassossega a noite com xaropadas sertanejas e não tenho outros episódios para ver, é Raul quem tocará, mais uma vez, aqui no quarto.