MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

Rogel Samuel


De minha cara amiga Graça Carvalho, já falecida, recebi um precioso presente, a “Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar”, do seu pai, o super-poeta amazonense Farias de Carvalho, publicada em 1967 e desde então esgotada.
Lá re-encontro o poema “Ocaso”, que não lia desde que Farias de Carvalho foi meu professor, no noturno do Colégio Estadual, onde ele lecionava literatura e eu tanto aprendia com ele: “Meus mortos hão de vir no fim da tarde”.
Só dá para ler este belo texto quem o situa na Manaus da década de 50, ou início de 60, quando foi ele escrito.
Aquela era uma cidade sem iluminação, ilhada no meio da maior floresta tropical do mundo. Ao cair da tarde, as perigosas trevas da floresta invadiam, a nostalgia da escuridão e da morte ameaçava, aquele Rio Negro ficava realmente Negro. Negro como a Morte Negra. Negro da morte de vinte e oito mil índios vitimados em 1729, numa hecatombe nunca esquecida por aquelas margens, de tal sorte que perto dali há um rio, chamado Rio Urubu, “rio doente para sempre, / desde o município de Silves”, como certa vez escrevi; rio onde um dia meu pai não me deixou mergulhar, “como se ali o rio pudesse / para sempre me tragar”.
Naquelas águas estão sepultados nossos antepassados e o grande guerreiro Ajuricaba, o herói que está em toda a parte ao mesmo tempo [Aiuricaua], rio de sangue Negro, de espinhos venenosos, de cadáveres históricos. Há demônios nas margens e eu me lembro da impressão trágica, da depressão que nos assaltava, ao cair da tarde, quando a cidade invadida por nuvens de moscas besouros, piuns, carapanãs sanguessugas, corujas, e aranhas peludas que saíam de seus esconderijos, e escorpiões de ébano que procuravam caça, a floresta ameaçada agora ameaçava, retomava e reconquistava o seu lugar em São João da Barra, nos expulsando para sempre, tudo debaixo da gloriosa chuva do ouro do mais esplendoroso por-de-sol do mundo, algo como explosão de bomba atômica terminal, final, de fim de mundo, finnisterra, que se expandia em coloridas nuvens para todos os lados, junto com misteriosas aves do entardecer.
Ajuricaba veio do rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Para salvar seu filho caiu em emboscada e foi prisioneiro da Coroa Portuguesa, em 1729, a Coroa o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho, Ajuricaba, que era homem fortíssimo, arrancou do poste o grampo que o prendia e, com as correntes nas mãos algemadas, faz a matança dos soldados portugueses antes de se precipitar nas águas escuras do Rio Negro, onde morreu, não sem antes as amaldiçoar, e diz a lenda que é por isso que aquelas águas são estéreis, e não têm peixe. Logo depois, em vingança, o capitão Belchior Mendes de Moraes dizimou 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passou a se chamar Rio Urubu devido à montanha de cadáveres. E mais tarde balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso, Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta em Manaus, espalharam roupas contaminadas com varíola que disseminaram uma gigantesca epidemia que infectou 40 mil índios, arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres semi-vivos sendo devorados por moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros e formigas. A saúva antropófaga devora um corpo em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados na volta (30.430 operários foram internados no Hospital da Candelária, entre 1908 e 1912) e quando a locomotiva voltava só encontrava ossos brancos e limpos, comidos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre, usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca de tocandiras para provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um inteiro exército!
Por isso os mortos vinham no fim da tarde, “molhados da ferrugem líquida do rio”, diz o poeta, “que banha as margens dêste ... silêncio lúcido e sonoro / que embala na praia ao fim das tardes / os olhos de éter dos defuntos tortos / que lambem com o olhar a praia longe”.
Além disso, o trágico planger dos sinos da Matriz, construída por índios, da Igreja de São Sebastião, da Igreja dos Remédios, que se ouviam na inteira cidade, graves, ameaçadores, profundos, lembravam a Morte, e as rádios todas tocavam umas Avemarias, a Rádio Baré, a Difusora, a Rio-Mar, rádios de meu tempo, e misteriosas velhas beatas vestidas de negro, veladas, engolfadas, balbuciantes de preces, que se dirigiam às missas, entrando ainda sob a saraivada de toques dos imensos sinos magistrais.
É claro que, para nós, jovens poetas, devassos e boêmios, era a hora de nos preparar para as aulas e depois beber no Bacurau, no início da João Coelho, junto com catraieiros, prostitutas, mendigos e bandidos alcoólatras, provando aqueles peixes fritos, o pacu, a sardinha, o matrinchão, entre goles de cachaça barata; ou íamos para o Bar Bolero, que ficava na Cachoeirinha, na Rua Belém (creio eu, pois a memória já me falha), onde ouvíamos Nelson Gonçalves cantar os maiores sucessos em serenata, como os “Lábios que beijei”, e isso ia até ao raiar do dia, quando voltávamos, bêbados, felizes, para nossas casas, a pé, sob o latido generalizado dos cachorros dentro dos muros das casas, cães que não compreendiam por que tão tarde (e tão cedo) passávamos nós por ali, no deserto das ruas que um dia inspirou o poeta L. Ruas a escrever:

Ah!
Esta lua
Neste fim de rua