Um mergulho no mundo de "Zona do Crepúsculo"...

(Miguel Carqueija)

    
    Querida e amada Letícia!
    Desde que vim para esta cidade, que tudo corre às mil maravilhas para mim!
    Os meus negócios prosperam e creio mesmo que em um ano terei feito um pé-de-meia mais que suficiente para oferecer como dote em nosso casamento. É só ter um pouco de paciência para esperar.
    Aqui é fácil ganhar dinheiro quando se trabalha com afinco; as pessoas são simpáticas e brincalhonas; as praças são lindamente ajardinadas com profusão de orquídeas e bromélias. Há muitas crianças, muitos cães passeando nas ruas.
    Há somente uma coisa que eu acho meio estranha: os mantos roxos.
    A primeira vez que eu os vi foi à cerca de seis meses, ou seja pouco tempo após a minha transferência para cá. Eu estava insone, numa noite verdadeiramente bochornal; não agüentando mais os mosquitos e o abafamento (ainda não havia instalado o ar condicionado, e os ventiladores de pouco adiantavam) resolvi dar um giro pelas ruas. Veja bem, meu amor, ao sair notei que o meu cuco anunciava meia-noite. Pois bem, desci as escadas do prédio, abri a porta do vestíbulo, iluminado por um tênue lampião de gás... e foi aí que eu os vi.
    Acredito que foi a maior surpresa que tive em toda a minha vida. De um lado e outro da rua escura e silenciosa viam-se estanhos vultos encapuzados, totalmente cobertos por medonhos mantos roxos. Com as mãos nos bolsos, eles passavam em todas as direções inclusive cortando as esquinas pelas ruas transversais. Eram muitos, caminhavam sozinhos e silenciosos e não se falavam. Pareciam nem se olhar; apenas caminhavam rápida e silentemente, passando inclusive perto de mim sem parecer que me notavam.
    Era uma coisa chocante e inacreditável; parecia uma invasão. Você me acreditará, querida Letícia, se eu disser que, a princípio, nem me passou pela cabeça falar com eles? Eram uma visão tão assustadora e absurda que, por instinto, eu tratei de me afastar; voltei para dentro de casa.
    Na manhã seguinte, ao tomar meu desjejum no barzinho da esquina, perguntei ao Orlandino sobre os mantos roxos. O rapaz, de hábito tão atencioso e brincalhão, mudou de personalidade: esbugalhou os olhos, recuou um pouco e, segurando pateticamente a toalha no pires, exclamou: — Que mantos roxos? Não sei de nada, ninguém aqui sabe nada a respeito!
    — Mas eu os vi... uma multidão deles, circulando pela rua em todas as direções...
    Percebi que todo mundo me olhava com cara de velório. O proprietário do bar chamou o empregado dizendo: — Anda, tem serviço lá dentro! — E ele se foi, sem pedir licença nem olhar para trás. Eu tentei com o Seu Juvenal então:
    — E o senhor, não sabe o que são esses mantos roxos?
    — Meu amigo, não o aconselho a falar dessas coisas. O senhor deve estar sonhando.
     — Como sonhando? Pois se eu saí à rua...
    — Por favor, meu amigo. O senhor vai criar problemas para o meu estabelecimento! Será que não entende? Esses homens de manto roxo não existem e nem podem existir!
    — Mas como não podem se eu os vi?
    — Como eu disse, foi tudo sonho ou alucinação! Agora, se me dá licença...
    Reações similares ocorreram com todas as pessoas abordadas. Todas negavam a existência dos mantos roxos, e manifestavam uma bizarra hostilidade para qualquer insistência no assunto. Na noite seguinte eu me encontrava intrigadíssimo e fiquei de olho, da janela mesmo, quando deu meia-noite. Meu amor, juro que eles apareceram! Aqueles ominosos seres vieram de todas as direções, entrecruzaram-se e prosseguiram seu solene passeio. A procissão macabra demorou uns quinze minutos; depois tudo voltou ao normal.
    Até hoje não sei o que eles significam. Todas as minhas tentativas de esclarecer o mistério falharam. Apenas um menino de treze anos falou-me certo dia, a medo: — Só digo uma coisa ao senhor: não siga nenhum deles. Senão, o senhor acaba virando também um manto roxo.
    — Você está brincando comigo? — quis saber.
    — Brincando? Qual o que! O senhor não sabe que a população dessa cidade diminuiu? Os que estão faltando... foram para aonde?
    Mas eu não me deixarei iludir por essas coisas. Resolvi esclarecer esse mistério, custe o que custar. Não acredito que um homem possa ser transformado num zumbi só por seguir alguém. Assim, estou decidido a seguir um dos mantos roxos até onde ele for. E até mesmo arrancar o capuz de um deles, obrigá-lo a esclarecer o mistério. Querida, eu te amo muito, vou ficando por aqui e não te assustes...
    
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    Esta carta foi a última notícia que Letícia teve de seu noivo Gerson.
    Semanas depois, desesperada, apareceu no hotel onde o rapaz se hospedara. Ninguém sabia que fim ele tinha levado. Ela indagou sobre os mantos roxos: disseram-lhe que isto com certeza era puro delírio.
    Letícia constatou que as coisas de Gerson ainda estavam no quarto que ele alugara. Ela se hospedou naquele quarto, sem que o gerente fizesse a mínima objeção. Ficou acordada até a meia-noite e aí observou a rua.
    E os mantos roxos não apareceram, embora ela aguardasse por meia hora.
    “Então é isso”, pensou a garota. “Você estava querendo livrar-se do nosso compromisso e sumir no mundo, e bolou esse expediente bizarro. Até abandonou algumas coisas para dar verossimilhança à sua história. Mas eu bem que desconfiava.”
    Na manhã seguinte ela pegou o carro e foi embora para sempre, disposta a esquecer.
    E nem se lembrou que entrara o horário de verão e que ela simplesmente não adiantara o seu relógio.