James Joyce e o surrealismo
Por Bráulio Tavares Em: 18/05/2024, às 22H32
[Bráulio Tavares]
Há cerca de cem anos, a Literatura e o Inconsciente estavam embarcando numa lua-de-mel intensa e desconcertante. Como em tantas luas-de-mel, o desejo mútuo era avassalador, mas ao mesmo tempo era preciso renegociar expectativas, demarcar jurisdições, sincronizar ritmos, assimilar surpresas, descartar inadequações, apresentar trunfos, regar terrenos promissores, virar a mesa quando preciso, cultivar a antiga arte do armistício negociado.
Digo “há cerca de cem anos” porque nenhuma aventura literária é datada. Para quem precisa de uma âncora cronológica, lembro que o primeiro Manifesto do Surrealismo foi publicado por André Breton em 1924.
Quando falamos da atividade literária talvez seja mais útil focalizar décadas do que anos; e as décadas entre as duas Guerras Mundiais foram um período muito rico na história da Europa. Uma festa num edifício com incêndio no porão.
O Surrealismo já existia como espírito e prática. Era um oitavo-passageiro alimentando-se da energia do movimento Dada. E em 1920 já era publicado o livro Les Champs Magnétiques, escrito a quatro mãos por Breton e Philippe Soupault, considerado uma das primeiras experiências oficiais da “escrita automática”.
A escrita automática é a prática paradoxal de escrever sem pensar, escrever sem raciocinar, sem julgar, sem premeditar efeitos, sem ajustar-se a regras. Na definição clássica de Breton, no manifesto de 1924:
Surrealismo, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.
(André Breton, Manifestos do Surrealismo, Ed. Nau, Rio, 2001, trad. Sérgio Pachá, p. 40)
Durante esse mesmo período, esfingeticamente alheio ao Surrealismo (será?), James Joyce estava em Paris, na reta final de elaboração de seu Ulisses, que sairia finalmente em 1922.
A publicação de um livro é muito diferente do nascimento de uma pessoa. Um livro só começa a existir para o público depois que é editado, mas muitas vezes (é o caso do Ulysses) ele já existia não só para seu autor, mas para pessoas que acompanhavam sua criação. Já era uma realidade literária, mesmo que numa bolha restrita.
James Joyce desembarcou em Paris em meados de 1920, vindo de Trieste e Zurique. Les Champs Magnétiques tinha acabado de surgir, e as polêmicas bretonianas estavam taxiando para decolar. Joycismo e Surrealismo eram dois vulcões fumaçando à distância, levemente conscientes da existência um do outro.
E cada um deles mergulhando sem medo no magma ardente do inconsciente, e cuspindo-o para o alto em forma de lavas e palavras. É curioso observar que de todo o grupo Surrealista foi justamente Philippe Soupault o único que tornou-se amigo de Joyce e frequentou seu círculo de amizades literárias até o fim da vida – se bem que as amizades de Joyce, tal como as de André Breton, estavam sempre sujeitas a chuvas e trovoadas.
(Philippe Soupault)
Qual seria a divergência entre o Surrealismo e a literatura joyceana? Ambos pareciam buscar o fluxo-de-consciência, o acasalamento freudiano entre palavras, a algaravia primordial, um nonsense permanente e libertador, os duplos-sentidos eróticos onipresentes. Sua divergência não era proposital nem antagônica: eram apenas dois projetos literários distintos, bebendo na mesma fonte, numa Paris em que havia um movimento de vanguarda em cada esquina.
Curiosamente, o Surrealismo enxotava a pontapés o conceito de estética literária, como se vê na definição acima. O propósito de Breton, por incrível que pareça, dava à Ciência um protagonismo que ia além da mera prosa, da mera poesia. Sua fascinação por Marx e Freud não derivava apenas do impulso revolucionário da filosofia de ambos, mas por serem tentativas de resolver cientificamente, pragmaticamente, os problemas das sociedades e das mentes humanas.
É certo que o surrealismo, que vimos adotar socialmente, de caso pensado, a fórmula marxista, não pretende dar como algo de somenos valia a crítica freudiana das idéias: muito pelo contrário, considera tal crítica a primeira em importância e a única assentada em bases firmes.
(“Segundo Manifesto”; pág. 191-192)
Coube a Breton, anos depois, fazer um diagnóstico dessa divergência, e é curioso como ele trata de maneira um tanto desdenhosa a literatura. (Ao expurgar alguns dos ex-companheiros, ele muitas vezes os acusava de estar querendo fazer literatura, e não surrealismo.)
Em “Do Surrealismo em suas Obras Vivas”, texto de 1953 incluído no volume dos “manifestos”, Breton argumenta:
Embora manifestem uma vontade comum de insurreição contra a tirania de uma linguagem inteiramente aviltada, procedimentos como a “escrita automática”, na origem do surrealismo, e o “monólogo interior”, no sistema joyciano, radicalmente diferem em seus fundamentos. (pág. 356)
Para Breton, Joyce pretende fazer, de sua prosa,
... um fluxo que ele se esforça por fazer jorrar de todos os lados e que tende, afinal, à imitação mais próxima possível da vida (e, assim fazendo, ele se mantém no âmbito da arte, recai na ilusão romanesca, não evita tomar lugar na longa linhagem dos naturalistas e expressionistas).
É uma formulação mais madura e mais diplomática do desabafo feroz de Breton no “Segundo Manifesto”:
Que poderiam esperar da experiência surrealista os que de algum modo se preocupam com o lugar que ocuparão no mundo? (pág. 154)
O autor dos Campos Magnéticos não está preocupado com a linha evolutiva da literatura européia, ou algo equivalente. E diz:
A essa mesma corrente – muito mais modestamente, à primeira vista – o “automatismo psíquico puro” que comanda o surrealismo oporá a vazão de uma fonte que apenas cumpre explorar suficientemente fundo, no interior de cada um, e da qual não seria possível tentar dirigir o fluxo sem a certeza de estancá-lo. (pág. 356-357)
Breton afirma que o surrealismo descobriu e dominou a técnica de acessar o Inconsciente, ou de transformar o Inconsciente em discurso. Ora, todo artista que proclama suas descobertas exagera seus méritos e seu alcance. A descoberta surrealista é (para mim) uma das mais importantes da literatura moderna, e entendo o entusiasmo (e a relativa empáfia) de André Breton ao dizer:
[A] idéia surrealista visa, simplesmente, à recuperação total de nossa força psíquica por um meio que mais não é do que a descida vertiginosa ao interior de nós mesmos, a iluminação sistemática dos lugares ocultos e o obscurecimento progressivo dos outros lugares, o passeio perpétuo em plena zona proibida. (pág. 166).
[J]á não se trata, essencialmente, de produzir obras de arte, mas de iluminar a parte não revelada e, por conseguinte, revelável, do nosso ser. (pág. 382)
O otimismo de Breton se justifica em função da juventude, do entusiasmo, do furor polêmico (a existência do Surrealismo é pontilhada de pelejas, de rompimentos, de defenestrações).
(André Breton, por André Masson)
A “escrita automática”, contudo, nunca chega a constituir um produto final, quando se trata de publicar livros: é matéria-prima, a ser retrabalhada literariamente. Um texto de Stéphanie Parent (da Université du Québec à Montréal) examina os manuscritos originais de Les Champs Magnétiques, a obra em que a escrita automática foi oficialmente lançada; e constata como o texto foi corrigido, revisado, consertado e em muitos pontos melhorado pelos dois poetas, principalmente por Breton.
Aqui:
https://admin.oic.production.nt2.ca/wp-content/uploads/2013/06/cf4-12-parent-le_manuscrit_des_champs_magnetiques.pdf
O jogo verbal do Inconsciente é um fenômeno fascinante, mas não podemos menosprezar o puxão gravitacional da literatura. James Joyce se entregou a ele com total abandono, e os Surrealistas, Breton inclusive, com um misto de recalcitrância e esperneio. Nada de mais. A prosa surrealista (estou nestes dias terminando a leitura do Peixe Solúvel, 1924, de Breton) não pode se comparar à ossatura narrativa sólida (ainda que surpreendente) do Ulysses. Talvez se aproxime do fluxo menos linear do Finnegans Wake.
Se bem que James Joyce, mesmo quando elogiava autores de vanguarda, dizia: “Se perguntarem a eles o que significa alguma passagem tipicamente obscura de seus livros, não saberão o que dizer. Quanto a mim, sou capaz de justificar cada palavra de cada livro meu.”