Haicais do Sol, de Dílson Lages

[Carlos Evandro Martins Eulálio]

A história do haicai no Brasil tem início com as produções do imigrante japonês poeta Shuhei Uetsuka (1876-1935), conhecido como Hyôkotsu, que   desembarcou no Porto de Santos (SP) a 18 de junho de 1908, com a primeira leva de imigrantes japoneses. Uetsuka, em terras brasileiras, escreveu o seguinte haicai, referindo-se à visão das escarpas da Serra do Mar durante o inverno:

A nau imigrante
chegando: vê-se lá no
alto a cascata seca.

Curiosamente, era época de festas juninas, quando se viam balões e fogos de artifício iluminando os céus. Talvez por isso os imigrantes imaginassem que o povo brasileiro lhes dava as boas-vindas. Observando as festividades, Shuhei Uetsuka escreveu este haicai:

A primeira noite
passada no Brasil
Festival de fogueiras.

Esses são os dois primeiros haicais de que se tem registro escritos no Brasil. (1)  

No entanto, é importante mencionar que, muito antes, isto é, no século XVII, o poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694), conhecido em todo o mundo como o maior haicaísta da literatura nipônica, notabilizou-se como um grande mestre de haicai, sento sua poesia fonte de inspiração para muitos poetas brasileiros até hoje.

Em 1919, é Afrânio Peixoto (1876-1947) o primeiro escritor brasileiro a divulgar o haicai em nosso meio. Na introdução do seu livro Trovas Populares Brasileiras, assim manifestou suas impressões sobre o haicai: “Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda do que nossa trova popular: é o haikai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir, senão com ênfase o epigrama lírico. São tercetos breves, versos de cinco, sete e cinco pés, ao todo dezessete sílabas. Nesses moldes vazam, entretanto, emoções, comparações, sugestões, suspiros, desejos, sonhos... de encanto intraduzível”. (2) Nesse mesmo ano, Afrânio Peixoto publicou cinco haicais, comparando a trova brasileira com o haicai japonês.     

Nas décadas de 1930 e 1940, o poeta Guilherme de Almeida torna-o conhecido popularmente e, numa adaptação pessoal, inseriu títulos em seus haicais e mais duas rimas: uma a unir o primeiro com o terceiro verso, e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba, como neste exemplo:

 

Caridade

 

Desfolha-se a rosa.

Parece até que floresce

O chão cor-de-rosa. (3)

 

Na opinião do poeta Paulo Franchetti, expoente teórico contemporâneo de haicai no Brasil, Guilherme de Almeida “propõe um haicai que é uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia técnica.” (4)  Quanto ao título no haicai, o autor justifica: "o título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o título”. (5)

Após Guilherme de Almeida, outros poetas como Pedro Xisto, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Alice Ruiz, entre outros, produziram haicais que, embora adaptados ao estilo de cada autor, também dialogaram com a experiência concretista, deflagrada em 1955, por Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Estes, influenciados pelas reflexões de Erzra Pound sobre a poesia chinesa e japonesa, formularam o princípio ideogramático de composição, peça-chave da Poesia Concreta.       

Conforme ainda Franchetti, “no momento, no Brasil, coexistem e estão ativas as várias ver­tentes do haicai brasileiro: a tradicionalista, de inspiração zen, a fi­liada a Guilherme de Almeida, epigramática, e a de matriz concre­tista. Mas o que parece novo é o sincretismo que se opera entre elas (com exceção da vertente guilhermina, que pouco dialoga com as demais), ganhando mais peso a incorporação dos princípios e práticas do haicai tradicional, entendido antes como atividade, como aprendizado de uma determinada forma de olhar para o mundo e utilizar a lingua­gem, do que como técnica de composição ou forma fixa exótica.” (6)

Em meio a esse sincretismo de tendências nesse gênero de poesia, Haicais do Sol desponta como a mais recente obra literária do escritor Dilson Lages Monteiro, publicada pela Editora Nova Aliança: Teresina: 2023. Dilson Lages escreve também romances, contos, crônicas, poesias, ensaios e livros infanto-juvenis. O livro Haicais do Sol assinala a estreia do autor nesse gênero  seguindo a linha de produção que caracteriza as criações de Matsuo Bashô.

Tradicionalmente, o haicai é um poema sem título e sem rimas, escrito em linguagem simples, clara e objetiva, com uma referência à natureza, especialmente a uma das quatro estações do ano, representada por um termo sazonal (palavra-de-estação) denominado kigo ou kigô.  Além de apontar para o tema do poema, o kigo sugere o espaço e a estação do ano em que o texto foi produzido, sempre buscando expressar a relação entre o ser humano e a natureza. É relacionado a uma representação da experiência vivenciada pelo eu lírico. Os mais ortodoxos haicaístas não concebem o haicai sem essa palavra de estação. Nestes quatro poemas de Haicais do Sol, eis como Dilson Lages caracteriza o kigo:  

A tarde queima                 

O ar ardente das ruas       

Respira vapor     

             

O eu lírico capta um flagrante da natureza, típico das tardes de verão, a estação do sol, e o materializa neste haicai.

                                                   

Sereno de maio                

desmoronou na telha           

De gota em gota.

 

Este haicai evidencia o outono; o mês de maio como um marco de transição para o inverno. 

                                                 

O frio da tristeza               

Da coruja com frio             

Calou a noite                             

 

O inverno é tempo de recolhimento e de solidão;  tempo de autorreflexão e espera de recomeços. 

 

Bem-Te-Vi, te vi                

No alto da mangueira                    

Tão cheio de si.   

 

O canto triunfante do  Bem-te-vi anuncia o início da primavera, momento de florescimento, fertilidade e  otimismo. O Bem-Te-Vi é o kigo da primavera.               

                    

Originalmente, a estrutura do Haicai constitui-se de três estrofes que totalizam 17 sílabas, sendo a primeira e a terceira estrofes com cinco versos, e a segunda, com sete versos. No Brasil, equivocadamente, muitos associam o haicai a qualquer poema curto de três versos, chegando a confundi-lo com o epigrama.

Haicais do Sol é cenário de imagens poéticas carregadas de emoção do estado de espírito de seu criador. O poético, resultante da articulação dos componentes sensorial, sonoro, visual e verbal, formam um todo indivisível. Eis alguns exemplos:

 

Uru, rururu                       

Corujas tristes, tristes       

Valsas na noite                 

 

Nas correntezas

Peixinho de prata

Espelho do céu     

 

Sapoti doce

 Mordida de morcegos

 Apodreceu no chão

                                 

Essa junção de recursos poéticos a que aludimos, torna possível ao leitor perceber nos textos mencionados a fluência de imagens sinestésicas que remetem a diferentes ordens sensoriais como o pio da coruja, o brilho dos peixes ao sol e o sabor adocicado do sapoti.

Ezra Pound na obra ABC da Literatura afirma que o poema possui em sua organização três propriedades: melopeia, fanopeia e logopeia. A melopeia diz respeito à sonoridade do poema; a fanopeia, ao seu aspecto visual, e a logopeia, à parte reflexiva da composição. (7) Nos haicais de Dilson Lages podemos encontrar esses três elementos num só texto:          

 

Toc toc do machado

 Quebradeiras de babaçu

 Coco no cofo

 

Nesse haicai, o eu lírico resgata uma cena que nos remete à atividade das mulheres quebradeiras de coco babaçu, existentes nas regiões camponesas do Maranhão, Piauí, Pará e Tocantins. A sonoridade onomatopaica do primeiro verso e a aliteração do terceiro levam-nos a refletir sobre a difícil e rude atividade dessas mulheres que lutam no dia a dia pela sobrevivência.

Na obra Haicais do Sol, Dilson Lages reúne haicais no estilo tradicional ou clássico, com temática variada: o amor, a solidão, o sentimento da separação, reminiscências da infância, entre outros. Todo o livro é um canto à natureza, focado essencialmente na musicalidade poética. Em suas páginas, o eu lírico celebra o encanto da fauna e da flora piauiense, numa linguagem sensorial e imagística. Árvores, aves, frutas e flores perpassam nos haicais que evocam no leitor uma dada percepção sensória de um instante único e fugaz, conciso e reflexivo.       

                    

* Carlos Evandro M. Eulálio, professor de Literatura e de Língua Portuguesa, é membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da Cadeira 38.

 

NOTAS

1. Esses dados sobre o poeta Shuhei Uetsuka, foram coletados do artigo Os Pioneiros, de Edson Kenji Iura, haicaísta do Grêmio Haicai Ipê e também um dos colunistas da seção Arte em Letras.

https://www.nippo.com.br/v2_zashi/arte_letras/01a.php, acessado em 28.4.2024.

 

2. PEIXOTO, Afrânio in GOGA, H. Masuda. O Haicai no Brasil. São Paulo: Editora Oriento, 1988, p. 22.

 

3. FRANCHETT, Paulo. O Haicai no Brasil. São Paulo: Editora Oriento, 1988: p. 268.   

 

4. FRANCHETT, Paulo. Guilherme de Almeida e a História do Haicai no Brasil. In https://paulofranchetti.blogspot.com, acessado em 29.1.24. 

 

5. ALMEIDA, Guilherme de. Apud FRANCHETT, Paulo, op. cit., acessado em 29.1. 24.  

 

6. FRANCHETT, Paulo. Op. cit., 1988, p. 268.     

 

7. POUND, Erzra Weston Loomis. ABC da Literatura, 12.ed. Trad. de João Paulo Paes e Augusto de Campos. São Paulo, Cultrix, 2013.