ELMAR CARVALHO

 

Com a morte de minha mãe, voltei a me lembrar de coisas que ela me contava, do tempo em que moramos no povoado Papagaio, que pouco depois se tornaria cidade, com o nome de Francinópolis. Muitas dessas lembranças assimilei como se fossem memórias minhas, mas na verdade são falsas recordações, pois eu tinha apenas dois anos de vida, quando nela moramos, por um pouco mais de um ano. Meu irmão João José nasceu nessa boa terra.

 

Foi no Papagaio que meu pai assumiu seu cargo no antigo Departamento de Correios e Telégrafos. Consta como sendo um de seus primeiros moradores, e por isso considerado seu fundador, o retirante cearense Manoel Papagaio, que fugia de uma grande seca, que castigava sua terra natal, e ali resolveu fixar residência com ânimo definitivo, à margem do riacho Olho D'água de Baixo. Depois, ele promoveu a vinda de vários outros parentes, que contribuíram para o povoamento do lugar.

 

Quando meus pais lá chegaram, para fixar residência, o senhor Joel Ferreira dos Santos, seu colega do DCT, em gesto de muita nobreza e generosidade, havia enchido os potes da casa e tinha providenciado um enorme feixe de lenha, para o forno ou fogão. Posteriormente, meus pais tiveram a honra de ser padrinhos de seu filho Joel, falecido há dois ou três anos, aproximadamente. Portanto, tornaram-se compadres de Joel e de dona Capitulina, pelos quais tinham muita amizade e afeição. Por longos anos não mais se encontraram, mas nutriam boas recordações desse digno casal.

 

Meus pais falavam que havia no povoado uma pequena igreja, sob a invocação de São Francisco, no alto de um morro. Imagino meus pais, ainda jovens e bonitos, casados há pouco tempo, católicos praticantes, indo participar de alguma novena, terço ou eventual missa, celebrada por algum padre em desobriga. Anualmente realizava-se o festejo do padroeiro, certamente com os indefectíveis leilões e quermesses.

 

Meus pais formavam um belo casal, e foram unidos até a morte recente de minha mãe, aos 79 anos de idade, tendo meu pai 87 janeiros, nascido que foi no dia 5 desse mês, no ano de 1926. Talvez induzido pelas lembranças de meus pais, tive, algumas vezes, um sonho repetitivo, em que eu chegava a uma pequena cidade, que tinha no cume de um outeiro uma ermida. Era um tanto semelhante à cidade de Francinópolis, que vim a conhecer recentemente, quando a visitei em companhia de meus pais e de meu irmão César.

 

Meu pai guardava lembrança de antigos moradores do lugar. Foram vizinhos de dona Felícia, falecida faz pouco tempo, esposa do comerciante Otávio. Ela era tia de Xavier Neto, que foi deputado estadual e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, conforme este me informou em conversa, alguns anos atrás. Morava perto da casa de meus pais a senhora Maria Lameu, dona de um pequeno comércio. Meu pai ainda se recorda dos comerciantes Pedro Lopes, Antônio Coimbra, Adauto Soares, do fazendeiro João Leite, do farmacêutico Egídio e do alfaiate José Nogueira.

 

Tornaram-se amigos de meus pais os irmãos Edgar, Odete, Graça, Celecinda, Glória e Edmar Soares, que foi um dos primeiros prefeitos de Francinópolis, filhos de Zeca Soares e Francisca (Vidinha). Muitas moças da vizinhança, conhecidas ou amigas de minha mãe, me tomaram no colo, quando eu era ainda bebê. Muitos desses moradores, alguns tendo sido lideranças políticas, são referidos no livro De Papagaio a Francinópolis, da historiadora Eliane Rodrigues de Morais.

 

Meu pai tinha enorme consideração pelo senhor Joel, e desejava reencontrá-lo. Colhi notícia dele por um colega do curso de Direito, seu conterrâneo, de nome Joelson, mas terminei não o localizando. Mas o destino tem os seus caprichos, e promove encontros e desencontros, de forma inesperada. Quando eu trabalhava na Sunab, que funcionava num dos andares do edifício do Ministério da Fazenda, fui à biblioteca, para ter uma rápida conversa com o professor Astrogildo Soares, seu bibliotecário-chefe, professor de Português e versado em literatura.

 

Ele conversava com uma moça, de nome Do Ó. Resolvi perguntar se ela seria filha do senhor Joel. Respondeu-me positivamente, e me disse que ele trabalhava na Procuradoria da República, que funcionava num dos andares do prédio. Procurei-o, e numa das vezes que meu pai foi a Teresina, fiz com que os dois velhos amigos se encontrassem em minha casa. Os dois ficaram emocionados, e conversaram a valer. Depois, Joel visitou meus pais em Campo Maior, onde desfiaram longo rosário de recordações.

 

Meus pais contavam com muita graça duas anedotas do período em que moraram em Papagaio. O resguardo das mulheres na época era muito rígido. A comida se restringia a galinha caipira. Quase tudo lhes fazia mal. Até um vento mais frio poderia fazer com que uma mulher pudesse “quebrar o resguardo”. Guardavam repouso absoluto por vários dias, acho que por um mês.

 

Um pano lhes envolvia a cabeça, para evitar friagens. Banho, somente na camarinha, e com água bem morna, quase quente. Quase todos os tipos de comida eram “carregados”, pois faziam mal à saúde. Uma criada caiu na tolice, por ingenuidade, de contar para a sua patroa que mexera a sua galinha com a mesma colher de pau com que havia mexido umas nambus. Imediatamente a parida disse que era por isso que estava sentido fortes dores de cabeça, quando até então de nada se queixara.

 

Logo que chegamos ao povoado, em gesto de muita delicadeza, como sinal de boas vindas e acolhimento, uma das irmãs Doca, Xexéu ou Madalena prometeu que iria mandar para meus pais um capão a molho pardo, de dar água na boca, e que a pessoa o comeria até pecar. Acrescentaram que a iguaria sequer iria sujar os pratos.

 

Por motivos que desconheço, mas certamente pelos afazeres e atribulações da vida, esse fino manjar terminou nunca nos sendo enviado, e, se o foi, o portador deve tê-lo deglutido no caminho. Em razão disso, mamãe dizia, com muita graça e, claro, sem nenhuma mágoa, que nunca vira uma promessa tão fielmente cumprida. O capão efetivamente não sujou os pratos de meus pais.