Bráulio Tavares
(Drummond, por Thiago Neumman)
Carlos Drummond era um personagem contraditório e surpreendente, meio caretão por um lado, meio devasso por outro. Visto do Norte-por-Noroeste era um burocrata sério, visto do Sul-Sudoeste era um garoto travesso e chapliniano. Tinha duas colheres de cristão, e uma e meia de comunista. Foi moderno quando ser moderno era ser exposto à galhofa, e retornou ao soneto quando ser moderno era uma garantia de paparicação. Era um funcionário público acomodado? Era um desconstrutor de idéias herdadas sem muita reflexão? Gostava do quê? De transgressões molecas ou de aconchego familiar?
É nessa refração de possibilidades que fica mais interessante olhar “Sweet Home”, poemazinho do livro Alguma Poesia de 1930. É um texto que lê diferente para olhos diferentes, descrevendo a tranquilidade e o conforto doméstico que os poetas de vários idiomas atribuem aos burgueses:
“Quebra luz, aconchego. / Teu braço morno me envolvendo. / a fumaça do meu cachimbo subindo. // Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês”. Esta última frase é deliciosa, sugerida pelo cachimbo (que Drummond não fumava – estarei errado?). E que lembra o soneto de Mário Quintana, “Que bom ficar”, em A rua dos cataventos (1940), que se encerra com este terceto saboroso: “Sair assim (tudo esquecer talvez!) / e ir andando, pela névoa lenta, / com a displicência de um fantasma inglês...”
Esses inglesismo, esse burguesismo tão começo-de-século, é satirizado por Drummond no contexto de um mundo que vai ficando moderno e, quem sabe, ameaçando algum sossego antigo: “O jornal conta história, mentiras… / Ora, afinal, a vida é um bruto romance / e nós vivemos folhetins sem o saber”. O burguês quer aventuras, mas as prefere no folhetim semanal que lhe vem por baixo da porta, pelas mãos do jornaleiro. O burguês quer aventura sem perigo, emoção sob controle, novidades que já conheça. O que ele gosta, gosta mesmo, vem em seguida: “Mas surge o imenso chá com torradas, / chá de minha burguesia contente. / Ó gozo de minha poltrona! / Ó doçura de folhetim! / Ó bocejo de felicidade!”.
Todo este poema é como uma daquelas imagens em que podemos ver duas coisas diferentes por uma simples mudança na maneira de olhar. O mesmo desenho mostra uma mulher ao espelho ou uma caveira. Outro mostra uma jovem ou uma velha; etc. O poema de Drummond mostra para mim o tédio insuportável, o ramerrão de uma vidinha sem graça, e ao mesmo tempo a felicidade e o aconchego de uma vida sem sobressaltos, sem desconfortos, sem questionamentos, a vida que o mundo burguês promete (e em muitos casos garante) a quem jogar o seu jogo. Não sei se estou sendo muito ousado em supor que Drummond, tanto quanto eu, via essa vidinha com menosprezo e com nostalgia. Tudo em seu intelecto a repudiava por medíocre, mas algo em sua estrutura mental se conformava a ela como os humoristas ingleses se conformavam ao imperialismo, ao colonialismo e ao fardo do homem branco