CAMPO MAIOR – TEMPO E SAUDADE
Por Elmar Carvalho Em: 17/01/2024, às 09H39
CAMPO MAIOR – TEMPO E SAUDADE
Elmar Carvalho
Quando literalmente tombaram
a Fazenda Tombador,
nenhuma voz se levantou,
nem mesmo a voz de alguém,
que clamasse no deserto, clamou.
E a Fazenda Tombador
literalmente tombou.
Por esses dias estive lendo Tempo e Saudade – nos caminhos da cidade, do professor, advogado e escritor Francisco de Assis de Lima. Segundo consta na orelha ele foi liderança estudantil, tendo idealizado e realizado, durante 14 anos, a Festa Coração de Estudante, tendo sido também presidente da AUCAM. Foi presidente do SINTE – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica do Piauí – Regional de Campo Maior. Fundou a Academia de Letras do Território dos Carnaubais. É o idealizador do Museu Popular. Exerceu vários cargos, entre públicos e privados. É servidor público estadual e municipal.
O seu livro trata de importantes assuntos da história de Campo Maior, entre os quais a fazenda Bitorocara, a primeira igreja de Santo Antônio, a criação da Vila de Campo Maior, o pelourinho, a criação de gado bovino, as lutas pela Independência do Brasil em terras piauienses, com ênfase para a Batalha do Jenipapo e as campanhas pelo reconhecimento de sua importância, cronologia dos fatos notáveis da localidade.
Aborda ainda a Intendência e a Câmara Municipal, citando vários de seus presidentes. Apresenta a síntese biográfica de vários campomaiorenses ilustres. Relata aspectos importantes do futebol e da cultura do município. Disserta sobre a saga do jornal A Luta, do qual eu e meu pai fomos colaboradores, nos idos de 1970. Como não poderia deixar de ser, sendo ele professor, discorre sobre a Educação do município, seus professores mais notáveis e seus principais educandários. Em suma, é um belo livro, pelo conteúdo, pela boa impressão, em papel de boa qualidade e com muitas fotografias de alta resolução, que merece estar na biblioteca de qualquer campomaiorense, amante da história de seu torrão.
O livro foi prefaciado pelo médico e escritor José Itamar Abreu Costa, e apresentado pela historiadora Pauliana Maria de Jesus, de cuja apresentação recolho o seguinte: “Adotando uma escrita simples e conservadora o autor narra a história de Campo Maior, desde a sua origem até os tempos atuais. Traz uma variedade de fontes como: imagens, leis e textos do jornal A Luta, enfatizando a importância desse periódico que funcionou como um veículo de notícias e informações sobre a cidade, um espaço de denúncias e críticas a determinadas ações do poder público ou cobranças por melhorias no município. O periódico A Luta foi criado em 1967 e funcionou até o final da década de 1970. Desse modo, o autor expõe diferentes textos do periódico A Luta deixando que o documento ‘fale por si só’ até mesmo como uma forma de não tirar o mérito daqueles que escreveram muitos desses textos.”
Como disse, meu pai e eu fomos colabores desse jornal. Minha primeira colaboração data de 1972, quando eu tinha 16 anos de idade. Nele publiquei contos e crônicas. Uma dessas crônicas discorre sobre a vez em que encontrei, no velho cemitério da Irmandade de Santo Antônio, o túmulo do poeta Moisés Eulálio. O jornal, portanto, além de noticioso e opinativo, e de fazer denúncias e críticas, também possuía um viés literário. Tinha ainda uma coluna social. Eu gostava de ler as matérias escritas pelo Irmão Turuka e pelo Dr. José Francisco Bona. Creio que as matérias escritas por eles dariam um belo livro.
Em sua parte final, a obra apresenta textos e/ou a síntese biográfica de autores campomaiorenses, entre os quais cito: José Miranda Filho, Ernani Napoleão Lima, José Elmar de Mélo Carvalho, José Omar Araújo Brasil, José Wagner Brazil Araújo, José Ataide Tôrres Costa Filho e um poema de cordel em homenagem a João Alves, da autoria de Antônia Pessoa. Eu tive a honra (e, por isso, sou grato ao Assis Lima), de ter o meu “épico moderno” A Zona Planetária transcrito na íntegra. Esse poema foi inspirado nessa zona meretrícia, que ostentava na parede da frente de cada um dos cabarés o nome e a imagem do respectivo planeta, que por sua vez tinha o nome de deuses greco-romanos. Assim, mesclei em meus versos a sociologia dos lupanares, a astronomia do sistema solar e a mitologia grega e latina.
Em sua apresentação, a historiadora Pauliana Maria de Jesus observa que o autor, “apesar de concordar e reafirmar sobre a teoria de Cláudio Melo, que defendeu o papel do Mestre-de-Campo Bernardo de Carvalho e Aguiar como precursor no desbravamento da região dos carnaubais, sendo responsável pelo povoamento de Campo Maior; tendo contribuído com a instalação da fazenda Bitorocara e construção da Igreja de Santo Antônio, célula de nascimento da cidade, Francisco de Assis problematiza sobre a ausência de vestígios que comprovem a localização da referida fazenda Bitorocara, haja vista que existem fazendas mais antigas que, apesar do tempo, ainda permanecem vestígios e até mesmo a estrutura bem conservada, como exemplo, da fazenda Abelheiras que é do mesmo período, assim, o autor abre espaço e diálogo para novas pesquisas acerca desse tema”.
É exatamente sobre esse questionamento ou problematização, que desejo tratar a partir deste ponto. Não falarei sobre a localização de Bitorocara, porque já o fiz através de meu artigo A localização da fazenda Bitorocara, que se encontra disponível na internet, no seguinte endereço: https://poetaelmar.blogspot.com/search?q=A+localiza%C3%A7%C3%A3o+de+bitorocara
O historiador Reginaldo Miranda, membro da Academia Piauiense de Letras, também já elucidou esse assunto, com texto publicado na internet.
Antes, porém, de enfrentar a problematização acima exposta, quero abordar e elucidar um outro questionamento que me diz respeito, diretamente.
Na página 21 do livro em comento, o autor afirma que não sou parente de Bernardo de Carvalho, e se o fosse, seria distante. Sinto-me compelido a esclarecer esse ponto. Nunca disse ser ou não ser parente dessa ilustre figura histórica. Por parte de meu pai, pertenço à família Carvalho de Almeida, de Barras. Sou descendente direto de Antônio Carvalho de Almeida (o 1º deste nome), sobrinho do padre Tomé de Carvalho. Foi este sacerdote que pediu a seu parente Bernardo de Carvalho, que construísse a primeira igreja de Santo Antônio do Surubim, tendo sido prontamente atendido, conforme está amplamente comprovado, através de certidão do ilustre vigário, que também foi o responsável pela construção da vetusta igreja de Nossa Senhora da Vitória, em Oeiras, que hoje é catedral. Nada mais desejo acrescentar sobre este assunto; e só fiz este breve comentário para esclarecer a dúvida exposta no livro.
Com todo o respeito ao historiador Francisco de Assis de Lima, penso que a comparação da fazenda Bitorocara de Bernardo de Carvalho com a fazenda Abelheiras não foi pertinente, no modo como foi feita, pelos motivos que direi. Vejamos o que diz o seu proprietário, o médico e escritor Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco, em seu livro Abelheiras (p. 73/74): “Em 1839 Jacob [de Almendra] foi à Bahia, a cavalo, distante mais de duzentas léguas do seu local de moradia e ali entabulou negócio com o visconde de Pirajá [Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque], de quem adquiriu, por dois contos de réis, as fazendas Abelheiras e Foge-Homem, no Piauí. A escritura pública foi lavrada em cartório, na cidade de Salvador, em 08 de agosto de 1839. Em Abelheiras tem-se como certo que o novo proprietário construiu o casarão de alvenaria, sede da fazenda, porque na escritura de transferência constam apenas casas de taipa, e porque na década de 1950, ao se fazer uma reforma, encontrou-se uma telha onde estava gravado, à mão, a data de 1842 – três anos após a compra. É muito provável que seja este o ano da construção da casa de Abelheiras, que ainda hoje encontra-se de pé. Quanto aos paredões de pedra dos currais de gado, tudo leva a crer que são mais antigos, da época da Casa da Torre.”
Portanto, dessa forma, Jacob de Almendra fez uma nova casa, de alvenaria, já que a antiga era de taipa, como consta no traslado de escritura (p. 63/66): “(...) Abelheiras e Foge Homem sitas na Vila do Campo Maior da Cidade de Oeiras Província do Piauhy e constam de terras casas de taipa currais e utencis”. Ou seja, as edificações eram de taipa, e não de alvenaria. Portanto, a atual sede de Abelheiras, que é de alvenaria, não poderia nunca ser as referidas no documento acima citado. Por via de consequência, embora a fazenda seja da mesma época da de Bernardo de Carvalho, a atual sede de Abelheiras é mais de 140 anos mais nova que a sede da fazenda Bitorocara.
Ora, se as sedes dessas duas fazendas acima referidas, pertencentes à poderosa Casa da Torre dos Garcia d’ Ávila, eram de taipa, tenho a convicção de que a sede da de Bernardo de Carvalho também o era. Não havia nenhum motivo para não o ser, ainda mais porque se destinava a ser sede de fazenda para criação de gado bovino. Assim, deveria ser uma construção rústica, de barro, palha e carnaúba, o que já acarretava a sua fragilidade, mormente quando não mais usada pelo proprietário. A incidência de temporais, intempéries e goteiras vai dissolvendo o barro da taipa, mormente nas invernadas rigorosas.
Bernardo de Carvalho deixou o Piauí em 1721, quando foi morar em sua fazenda São Bernardo, no Maranhão, onde construiu uma igreja sob a invocação desse santo. Por isso, é considerado o fundador dessa cidade. O escritor Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco, membro da Academia Piauiense de Letras, em seu festejado romance Mandu Ladino, considera que a sede da fazenda Bitorocara ficaria a seis quilômetros do local onde Bernardo construiu a igreja de Santo Antônio do Surubim, na confluência dos rios Surubim e Longá, em local talvez alagadiço, na época das grandes chuvas. Se isso for verdade (e não apenas ficção), com o afastamento de Bernardo e o consequente abandono da casa, certamente em pouco tempo essa frágil construção se tornou ruína; e já mais de 3 séculos se passaram.
Contudo, se ela ficava perto da igreja, como também é possível, foi sendo incorporada à pequena urbe que se foi formando, em torno dela e da igreja, de modo que é possível que tenha sido demolida, para a construção de outra, em alvenaria, e em formato arquitetônico mais apropriado para o uso urbano, e não mais, claro, como sede de fazenda. Portanto, pode simplesmente, pelo abandono, ter-se tornado ruína, ou ter sido demolida, para dar lugar a uma nova construção ou mesmo a uma reforma que a tenha descaracterizado. Em trezentos anos, muitas coisas podem acontecer.
Em sua monumental e primorosa obra Carnaúba, Pedra e Barro na Capitania de São José do Piauhy, em elegante prosa, quase diria poética, Olavo Pereira da Silva f., nos fala de quão frágeis são as construções feitas com esses materiais: “Carnaúba, pedra, barro, casas de boiadeiros, currais e cercas de pedra seca cravados no pasto orvalhado de Campo Maior (...) nos invernos de águas mansas, de várzeas recobertas de salsa roxa, em dias ventosos de batizados, quando o pau-d’arco e o flamboiã floravam labaredas (...) Miragens dos currais decadentes, o pequeno sítio se desfez e por falta de uso a casa desvaneceu.”
Não me causa nenhuma espécie ou estranheza a casa-grande de Bernardo de Carvalho haver desaparecido sem deixar vestígio. Em Teresina e em outras cidades grandes várias casas sólidas, de alvenaria, se “desvaneceram”, sem deixar o menor indício de sua existência, para simplesmente o imóvel ser transformado em estacionamento ou altos edifícios residenciais ou comerciais.
Em Campo Maior mesmo, nas últimas oito décadas, várias e importantes e históricas edificações desapareceram sem deixar o menor rastro, entre as quais cito as seguintes: a própria igreja colonial, cuja origem remontava a Bernardo de Carvalho, a casa da Fazenda Tombador, que já existia no tempo da Batalha do Jenipapo, alguns casarões da Praça Bona Primo, um dos quais fora sede da prefeitura, e um solar imponente, que ficava na frente dos Correios, e que desapareceu, para ser construída a sede de um supermercado. Devo dizer que, em minha meninice e adolescência, conheci muitas dessas edificações, inclusive a velha Fazenda Tombador, cuja demolição lamentei num de meus poemas. Dessa forma, posso dizer que, mesmo em nossa cidade e em tempos mais recentes, são inúmeras as casas que desaparecem sem deixar vestígio.
Quando tomei posse de minha cadeira na Academia de Letras do Vale do Longá, no ano de 1997, asseverei em meu discurso que se providências não fossem tomadas as velhas casas, que formavam o conjunto de cabarés da velha Zona Planetária, iriam se transformar em escombros. Infelizmente, para minha consternação, fui um bom profeta. No rigoroso “inverno” de 2006 ou 2007, creio, tombou o quarteirão em que ficavam os velhos lupanares. Parecia haver sido arrasado pelas bombas ou mísseis de uma guerra.
Isso me faz recordar a beleza dos títulos dos livros “A insustentável leveza do ser” e “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Tudo é frágil, tudo passa. Como são efêmeras a adolescência e a juventude. O mundo é composto de mudança, já nos dizia Camões. Só Deus é eterno, e pura e permanente a sua existência. A casa avoenga do poeta Manuel Bandeira, que lhe parecia tão sólida, não o era, como ele próprio disse, em seu poema Evocação do Recife:
A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Mas o mesmo vate, em outro poema, nos falou da importância da memória, ante a fragilidade das coisas, mesmo a das que nos parecem “impregnadas de eternidade”:
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Assim, repito, não me causa a menor estranheza, que a sede da fazenda de Bernardo de Carvalho, que teria mais de 3 séculos, tenha desaparecido sem deixar vestígio, como desapareceram vários solares e mesmo uma igreja, sem que deles nada mais reste, sequer o menor rastro. E de vários desses desaparecimentos muitos campomaiorenses, maiores de 50 anos, são testemunhas oculares.