As diversas faces do tempo em tinteiros da casa e do coração desertos, de Diego Mendes Sousa - ensaio de Alexandra Vieira de Almeida
Por Diego Mendes Sousa Em: 17/11/2023, às 10H24
Por Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
Logo no primeiro poema deste livro original do escritor Diego Mendes Sousa, temos o tema que vai percorrer todo o livro – o tempo – não em seu rosto único, mas em suas faces múltiplas, desdobrando um tema de uma nota solitária em toda sua amplidão de significados e matizes. Em “Tinteiros do Escuro Mergulho”, a infância é esta face da memória do tempo, em que o eu não é estático, mas passa pela transformação do tempo como “passagem”, “movimento”: “passa o tempo vivaz...” A casa hoje e a casa que ficou se interiorizam neste ser que admite o tempo como acorde dos sonhos: “Minha infância/é este rio cavernoso/que parte de mim para mim...”
E o tempo só se densifica na escrita e os “tinteiros” só fazem ressaltar esta metáfora da tinta como uma rasura no esquecimento, ferindo-o, para que a dor do sangue/tinta cubra as faces líricas deste eu peregrino que caminha pela casa e pelo coração desertos. O vazio foi o que ficou. Resta ao presente completar esta plenitude que se traduz como barulho, linguagem. A “tinta fresca” é presentificada, a memória é revivida e a essência de sua escrita é recordar. Como disse o grande teórico da literatura Emil Staiger, a beleza do lírico é a “recordação” e nada melhor do que a poesia para trazer à tona todos os embates da memória, em seu ritmo, em sua pulsação magistral, num recorte que se quer inaugural, pois é volta, origem, infância, família: “Renascer nos rumores que não mais existem.”
Se no tempo da origem, temos este recordar, temos um corte preciso quando se fala das faces do amor, pois em “Tinteiros do Alento do Amor”: “Não há sentimento/no anímico subterrâneo/que restaure/o sonho das dores /vestidas/sob o Amor”. Aqui o tempo é algo ligado à ruptura com o real, o real do hoje que não consegue resgatar do esquecimento as memórias de Eros: “À sombra da sonata do céu de hoje/não desarma o choro já acontecido”. Neste sentido, o tempo adquire um outro segredo de sua multiplicidade, a imutabilidade do passado, como se ele quisesse permanecer em sua eternidade incógnita, ignota e indecifrável. A permanência do tempo é descosturar os véus do hoje que mancham, distorcem a visão completa da experiência vivida: “A casa por que passamos/preserva os hábitos/do errar permanente/à luz dos clarões/consumidos?” O tempo neste livro é visto em toda sua extensão, em sua grandiosidade, seja pelo viés do labiríntico ultrapassar das margens, das lacunas através do presente, seja para não medi-lo, tornando-o incomensurável e eterno, lembrando-nos aqui do “Essencialismo”, de Murilo Mendes, ao querer ultrapassar o tempo efêmero, que causa dor, como se a eternidade fosse um desarmamento da dor a partir do mistério.
Outra face do tempo é o erotismo na imagem capturada na sua “Musa-mulher”. Misturando o sagrado e o profano, temos a imagem de Vênus num de seus poemas magistrais, incluído no livro. Diego Mendes Sousa quer eternizar o tempo com a amada em estado divinizado, mas que não deixa de ter a imanência do jogo erótico. Aqui temos uma estratégia inovadora na poesia deste poeta promissor, a mistura dos tempos ditos anteriormente no repouso de sua Amada atual, presentificando tempos eternos, mas ao mesmo tempo inacabados com sua Musa, pois o erotismo é esvaziar e preencher o vazio, o passar do tempo e a eternidade, como já se traduzia no verso do grandioso Vinicius de Moraes, “que seja infinito enquanto dure”. Temos nesta “dupla chama do erotismo”, nos reportando a Octávio Paz, um paradoxo entre esta estaticidade que perdura com a corrosão da dor do tempo. Podemos ver no poema-título do livro esta dinâmica vazio-plena do sentido do tempo: “A morada é deserta/dos vazios repletos/de ardor.”
Portanto, temos neste livro de Diego Mendes Sousa estas faces do tempo em “peleja eterna”, com seus “clarões” e “vulcões”, traduzindo a imanência e a transcendência num só sopro de vida, costurando as respostas e as questões nos espelhos invertidos da memória. Neste poeta impressionante por seus poemas ricos e inventivos, temos a solidão da memória, pois esta traz a solidão profunda, mas ao mesmo tempo se avizinha com os fantasmas, tendo sua companhia nos vazios dos corpos. Nas suas “Visões da Grande Noite”, para além das transcendências e eternidades da memória, encontramos a simbologia noturna do imanente erotismo: “A noite é Altair/e seus perfumes/ e sua seda de pele...” Assim, em Diego Mendes Sousa, o tempo é colocado como uma pintura numa moldura em que as simultaneidades dos pontos de vista se cruzam produzindo um perfume tão animador e vivaz como de sua Amada Musa que pode inebriar e extasiar o seu leitor que é ao mesmo tempo o poeta por ora aqui estudado, que é leitor e escritor de sua Musa inspiradora, o próprio tempo que se encarna e desencarna nas tintas claras e obscuras da memória.
Rio de Janeiro, março de 2017.
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TINTEIROS DA AFRODISIA ATREVIDA
À imitação da Vênus,
vi o teu corpo
de suave sombra
desenhada nas maçãs
sob o dorso varão
do semideus faminto.
À semelhança do meu destino –
caminheiro,
observei a pluma da tua vulva
a escapar no vento
dos beirais sonoros
em peleja
para o gozo ávido.
À beira do amor
e do tempo
e da beleza
de uma eternidade,
escrevo a mão
- divinizado -
na corrida desses cavalos
frente a frente.
À força do falo,
que rasga sempre
as tuas águas.
Poema de Diego Mendes Sousa