Antonio Gramsci volta à vida
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 03/01/2013, às 08H39
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
O estudo sobre os intelectuais desenvolvido por Gramsci é uma peça muito interessante. Ele seguiu o pensamento de Marx sobre o vínculo entre grupos sociais e cultura (arte, literatura, filosofia etc.) de modo a tirar do horizonte a ideia de que a cultura poderia pairar acima de interesses sociais bem determinados. Suas observações sobre a cultura de massas e a cultura popular foram legítimas e produtivas. Caso ele estivesse vivo estaria lendo Júlia, vendo o BBB, participando do Sertanejo Universitário e indo aos comícios de Malafaia e adendos. Ele teria perfil no facebook e participaria ativamente de toda a conversação na Internet. Gramsci era um curioso a respeito da vida popular. Mas, ele teria mantido a sua forma de abordar tudo isso, ou seja, o approach classista, vindo da herança marxista?
O Capitão América foi congelado na Segunda Guerra Mundial e voltou à vida em nossos tempos. Suponhamos que esse estranho fenômeno que fez de Steve Rogers manter a juventude nos dias de hoje, tivesse atingido também Antonio Gramsci na sua prisão italiana (vamos supor, também, que antes disso Gramsci tivesse passado por experiências equivalentes às de Rogers, que o transformaram em uma pessoa com uma constituição física especial, possível de suportar o processo de congelamento). O Capitão América acordou nos anos sessenta. Nosso Gramsci acordaria agora, duas décadas depois do fim da URSS, nessa situação em que vivemos, em que alguém que se diz antes marxista que scholar ou intelectual não é levado a sério. Ele não teria passado pelo processo histórico de desmitificação do marxismo, mas sendo inteligente, após alguns anos poderia passar pelo que ocorreu com Habermas. Tornar-se-ia então alguém ainda interessado em cultura popular e de massas, somente desprovido de preocupação com a sua perspectiva teórico-doutrinária?
Poderia eu dar um “sim” como resposta? Gramsci foi um intelectual efetiva e sinceramente interessado em cultura popular e cultura de massas, como algo que provocava curiosidade? Ou Gramsci foi interessado nisso por razões estratégicas?
Gramsci quis mesmo entender o senso comum e a cultura de massas. Quis compreender a cultura popular. Ele acreditava que o materialismo do marxismo era alguma coisa que poderia se tornar hegemônico, como o liberalismo havia se tornado, se os intelectuais de esquerda compreendessem o caminho de funcionamento do senso comum. O erro de Gramsci foi o de fazer seus estudos sob esse crivo do estrategismo, da política, da ideia de que ele tinha de descobrir o fio da meada da hegemonia. Ele nunca entendeu que a hegemonia não tem fio da meada e que um partido revolucionário não poderia fazer o que ele queria. Ele não entendeu, também, que o liberalismo nunca se tornou hegemônico como ele pensava. O que se tornou hegemônico foi um amálgama de mentalidades diversas. Chamar o liberallismo de “ideologia dominante” foi um erro. Gramsci não conseguiu sair desse erro. Tudo que se fez em nome do socialismo em sua relação com a cultura foi tão estratégico quanto o que se fez, por parte do leninismo, em relação à democracia.
Mas, embora tudo isso tenha sido muito forte, talvez, uma vez acordado agora, Gramsci viesse a descobrir a si mesmo como alguém que tinha uma curiosidade sobre a cultura de massas e a cultura popular típica de um scholar, de um filósofo, e não de um militante político. Se assim ocorresse, veríamos Gramsci produzindo artigos e livros sobre os produtos culturais que elenquei no início do texto. Mas, não podendo mais tratar esses produtos segundo a luta por hegemonia entre a “cultura proletária superior”, o materialismo histórico e dialético, e a “cultura burguesa” assentada no “liberalismo”, Gramsci teria de ceder a uma filosofia que, em sua época de jovem, ele não conseguiu compreender: o pragmatismo. Não lhe sobraria outra coisa na mão. Ele não poderia dizer o que os marxistas tradicionais diziam, ou seja, que toda a cultura burguesa é mera ideologia, falsidade, falsa consciência etc. Isso ele já não dizia em sua juventude. Todavia, ele não poderia advogar seu marxismo, uma vez que este não o levou a outra coisa senão a uma pesquisa que era mero apêndice de uma estratégia política.
Esse Gramsci descongelado seria bem vindo entre nós, pragmatistas. Por que não? Seria bem interessante vê-lo falar do BBB da Rede Globo sem as frases pseudo intelectuais de um Pedro Cardoso. A erudição com que Gramsci atuaria nos ajudaria demais. Se ele foi um erudito em cultura popular, e isso na prisão, sem livros, já imaginou ele agora, livre, e tendo todos os meios de comunicação nas mãos? A ideia de uma cultura classista iria pairar sobre ele, é claro, mas ele a teria como um parâmetro a mais, não como a verdade em relação à qual as coisas tinham de se encaixar. Uma conversa entre ele e nós, rortianos, talvez fosse alguma coisa de extremo valor. Talvez em pouco tempo pudéssemos compreender sentimentos que jamais imaginamos sequer existir nas pessoas, coisas alimentadas pelos produtos da cultura de massas em sua fusão crescente com a cultura popular. Penso que eu iria gostar de ouvi-lo contar sobre como tem apreciado ou não a novela “Salve Jorge”.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor e professor da UFRRJ