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A tessitura do lirismo social no conto O embondeiro que sonhava pássaros, de Mia Couto

Rosidelma Fraga

([email protected]).

 

O conto “O embondeiro que sonhava pássaros”, do escritor moçambicano Mia Couto pode ser lido pelo viés da tessitura lírica em virtude de sua dicção imagética e ritmica, a  qual se confunde com o texto poético. A narrativa desenrola-se com o percurso da sombra e da memória: “Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro” (COUTO, 1998, p.63). Esta primeira imagem exposta pelo narrador hererodiegético, aos poucos, irá ganhar a formação de drama altamente lírico. O lirismo desencadeia-se por meio do personagem sem nome que carregará a marca mítica do embondeiro, mesclando dor, lenda, sonho e magia.

Em Estórias africanas: história e antologia, a saudosa professora Maria Aparecida Santilli  (1985, p.30) elucida que a veia fulcral da narrativa de Moçambique, além da proposta nacionalista, se refere aos dramas sociais, mesclando “realidade e fantasia”, “sonho e realidade”, muitas vezes, recheada de descrição e lendas. Assim, o primeiro drama exposto no conto é o paradoxo da falta de identidade do vendedor de pássaros que “não tinha sequer o abrigo de um nome” (p.63). Entretanto, a identidade era acentuada na presença mística do embondeiro, “uma árvore muito sagrada, que Deus a plantara de cabeça para baixo” (p.63). Para os meninos, o embondeiro e o vendedor de pássaros possuiam um caráter sagrado, cheio de magia, encantamento e sonho.

Ora, o vendedor era mormente um sábio que transmitia as histórias e os casos míticos sobre a árvore. Todavia, os colonos demonstravam que o passarinheiro se opunha à própria cor dos brancos, aguçando o preconceito racial: “Aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizava aqueles pés descalços a sujarem o bairro? O negro que voltasse ao seu devido lugar” (COUTO, 1998, p.64). O negro era sem referências e sem identidade, por excelência. É curioso observar que, mesmo depois da independência, o negro continuou sendo retratado de maneira pejorativa. Para o crítico Manuel Ferreira (1977), na literatura africana de linha colonialista, o negro surgia acidentalmente e era evocado nos textos a partir de um caráter de preconceitos e racismos, ao passo que os homens brancos eram os heróis e os desbravadores de terras.

A despeito desse racismo expresso no conto de Mia Couto, assinala-se que apesar do fim do Regime Salazar, uma das grandes conquistas para os africanos no que se refere à emancipação política do país e, além disso, quanto ao fim do regime apartheid (1948-1994), de onde se ergue uma nova África do Sul, não foi possível excluir as cicatrizes da alma do africano. Para Waldman e Serrano (2007), no capítulo “Resistência e lutas pela independência”, da obra Memórias da África, a exclusão deste regime representou um grande mérito para a África do Sul, porém restaram as cicatrizes psicológicas porque o fim do regime de segregação racial não significou o encerramento do apartheid social, uma vez que “o africano ficou distinguido pela separação da expressão linha de cor” (WALDMAN;SERRANO, 2007, p.260). Veracidade é que o conto de Mia Couto, escrito depois de 1994, apesar de toda a carga lírica e imagética, não conseguiu se desvincular dessa denúncia social e nem escondeu as marcas da linha de cor que separa o colono branco do colonizado em África.

Dito isto, abre-se um parêntese para dizer que Moçambique esteve sob o domínio de Portugal desde o século XV até 1974. Com a queda de Salazar, Moçambique fica reconhecido como nação livre em 25 de Abril de 1975, porém, dois anos depois, o país é atingido pela guerra civil até 1992. Frente a tal contexto, as narrativas, como produto indissociável da História, não conseguiram separar de tais contextos e ainda chegam a ser um subsídio para o leitor repensar a identidade do moçambicano como é o caso da obra Cada homem é uma raça. Dir-se-ia que o narrador revela, ao longo do enredo, que o negro simbolizava a instauração da marca identitária ao fundir-se e confundir-se liricamente com o canto dos pássaros no embondeiro, de onde a imagem irá ser a transcendência do sujeito e de sua raça. A rigor, Rita Chaves (2005) explicou que a identidade do moçambicano se constitui pela recriação da linguagem e a chave-mestra para a construção é a multiplicidade de elementos poéticos.

A fantasia poética detecta-se na voz do personagem Tiago, o menino que perseguia sonhos, pois ele conviveu com o passarinheiro e, sobretudo falava aos pais sobre a árvore sagrada e seus mistérios. O caráter sobrenatural demarcava-se na fala do narrador acerca do português branco e o negro:

  

Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia verídico mundo. O vendedor anomimava, em humilde desaparecimento de si. Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? Onde, se eles tinha já desbravado os mais extensos matos? (COUTO, 1998, p. 65).

 

 As respostas aos questionamentos dos brancos vinham dos segredos do negro que apenas respondia com risos, porquanto o passarinheiro “dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres, se concluíam” (p. 65). Tal diferença entre o colonizador e o colono inquietaram os portugueses que “sentiam ciúmes do passado” (p.66). O passarinheiro adentrava no imaginário português e passou a ser a figura central do bairro. Mais do que isso, ele tornara-se parente das crianças, o contador de histórias e o causador de devaneios na consciência, onde o “faz de conta” aguçava a imaginação dos meninos: “Faz conta eu sou vosso tio” (p.66). Por conta disso e dos pássaros que invadiam todos os armários das casas dos colonos, os brancos resolveram destruir o embondeiro e castigar o passarinheiro. Doravante, o conto parece figurar na cena do mito e do sagrado e “o vendedeiro se guardava mais em lenda que em realidade”. Rezava a lenda que “Aquela flor era moradia dos espíritos. Quem fizesse mal ao embondeiro seria perseguido até ao fim da vida” (p.68). Acerca de tal aspecto mítico em Mia Couto, cita-se a obra Mito e realidade. Segundo o mitólogo Mircea Eliade (1972, p. 83), o mito pode ser entendido como recordação, por meio do qual se opera uma volta ao passado por meio da fantasia e da realidade. Com o recurso da anamnesis, a criação é “mais preciosa do que aquele que conhece a origem das coisas”. Portanto, a realização do mito no conto reside na presença da tradição e do culto ao passado, a qual se percebe pela realização da fantasia acoplada à lenda do embondeiro.

Com base na lenda, opera-se o mito na narrativa de Mia Couto de maneira a se pensar também nas considerações de Eleazar Mielietinski (1987, p.329). Para ele, o relacionamento entre literatura e mito “se liga via conto maravilhoso e heróico, que surgiram nas profundezas do folclore e continuaram a desenvolver-se ou foram recriados em livros”. Os mitos continuam a ser recriados na literatura e o mitologismo é um fenômeno peculiar da literatura do século XX e “é inconcebível neste século”. Portanto, o mito liga-se ao universo da fantasia, da recordação e da narrativa. Por excelência, “na fantasia artística e mitológica e na fantasia humana há certa identidade, na medida em que ela não é superável da alienação entre o indivíduo e as forças sociais e naturais extra-individuais” (MIELIETINSKI, 1987, p. 441).

Nessa perspectiva, o lirismo banha o conto com a presença dos aspectos mítico e místico concomitantemente. Quando os colonos violentam o vendedor de pássaros ocorre uma mágica comunicação superior e transcendental, peculiar da poesia: “foi então: as flores do embondeiro tombaram, pareciam astros de feltro. No chão, suas brancas pétalas, uma a uma, se avermelhavam” (p.69). A lenda contida no embondeiro valida-se por meio da ruptura com a crença. Na medida em que os colonos espancavam o negro, também agrediam o embondeiro. Ambos se fundem em poesia, já que essa, como estado anímico e existencialista, é entrar no ser. Para o menino, “aquela árvore era capaz de grandes tristezas” (p.65), ao passo que o velho passarinheiro, ao ser violentado pelos colonos, “parecia nem sofrer, vegetável, se não fosse o sangue” (p.68).

Rompendo-se com a lenda do embondeiro, o conto abre a imagem da transcendência via caráter sagrado que se efetiva pela presença da música, a arte que consegue manifestar os diversos afetos da alma humana mediante ao som. O passarinheiro machucado não consegue tocar a muska (gaita) e esta é atirada pela janela. O menino toca-a na cela e percebe a ausência do velho no instante em que há derramamento poético do canto dos pássaros. Tiago também transcende nesta última imagem da narrativa. Ao tocar a muska, ele consegue atrair os pássaros e os colonos revoltados atiram fogo na árvore e a lenda é cumprida. O mal que eles tentaram fazer ao passarinheiro se revertia ao colono que se emigrou no sonho do embondeiro:

  

As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução das cinzas. O menino, aprendiz de seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes (COUTO, 1998, p. 71).

 

 A linguagem metafórica é a responsável pela transcendência desde o início do último parágrafo em que a natureza e o personagem entram para um segundo nível da linguagem: o poético. No trecho “o fogo namorou as velhas cascas”, cria-se a ideia de volta às origens, pois “o menino transitava de reino: arvorejado”. Tal imagem leva o leitor a pensar na transmutação do indivíduo africano, já que arvorejar, verbo inventado, dá o sentido de nascer de novo, voltar à terra-mãe. O renascimento é muito mais nítido quando Tiago parece ser seduzido pelas cinzas e labaredas, uma vez que o “aprendiz de seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes” (p.71). Efetivamente, tal aspecto transcendental na obra de Mia Couto ocorre com a presença do fantástico: “o timbre do insólito advém do maravilhoso ou do sobrenatural”, explicou a professora Maria Aparecida Santilli (1999, p.98) no texto O fazer-crer, nas histórias de Mia Couto,na Revista Via Atlântica ( SANTILLI, 1999, N.3, p. 98-109).

Sobre a produção de Mia Couto, torna-se pertinente apontar o texto História e mito em cada homem é uma raça, de Alcione Manzoni Bidinoto (2004). A autora demonstra que a “construção verbal, em forma de enigma, é sintomática no que se refere à ambiguidade dos aspectos narrativos de “o embondeiro que sonhava pássaros”. No nível da linguagem, reflete-se a ambivalência” (BIDINOTO, 2004, p.77). O leitor não consegue desvendar os mistérios da morte e/ou desaparecimento do passarinheiro. Por conseguinte, ele permance na narrativa como preanunciou o narrador na primeira linha do conto: “Esse  homem vai ficar de sombra” (COUTO, 1998, p.63).

Ainda quanto ao final lírico do conto de Mia Couto, convém asseverar que o símbolo do fogo merece reflexão cuidadosa. Ele está associado à imagem das cinzas e remete à poesia. Segundo Gaston Bachelard (1999, p.59), “com a lenda de Fênix, a ave que ressurgia das cinzas pelos raios solares, é vista como símbolo da poesia, Fênix é sublimação absoluta da abertura à transcendência”. Neste contexto, o narrador miacoutiano traz a imagem lírica da regeneração por meio desses símbolos. As labaredas do fogo consomem a árvore e são as marcas da metáfora de purificação. Em Mia Couto, tem-se a duplicidade do fogo, ampliando os significados, por exemplo, se o leitor associar o fogo à visão africana de vida, a saber: geração, morte, regeneração (renascimento). Essa tríade imagética no conto remete ao ciclo vital, promulgando a eternidade do retorno mítico na figura do menino Tiago que se emigrou inteiramente para as suas raízes.


 

[Autora do Blog: http://rosidelmapoeta.blogspot.com]