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Essas “águas”, que vêem de “desconhecidas origens Numas”, águas mitológicas, são especiais, porque provêem do devaneio interno. O narrador Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do homem do final do século XX. Refiro-me àquela matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.[xlv] 

 

“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras, não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas, para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e “pode-se banhar e pescar”. A imaginação, como diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador”[xlvi], pois ela está resguardada pelas lembranças de antigas leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história), propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se “banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e “pescar” novíssimos juízos. As “gêneses lineares” versus a “força do não-dito”: Michel Foucault desenvolve um assunto interessante sobre a genealogia do poder e do saber.

“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.

Foi a partir da “Curva do Tucumã”, a curva onde se reencontram as diferentes cenas e onde elas desempenham papéis distintos, que os Numas/Numes ficcionais se infiltraram, avançaram e atravessaram as leis da história do homem ocidental, premiando os atuais leitores pós-modernos e futuros com uma númica e criativa cena: as indiazinhas Numas em interlúdio amoroso à beira das majestosas águas, eternas, do pensamento mitificado, a construir monumentos ciclópicos. Os Numas/Numes passaram “além de si mesmos” e não respeitaram seus próprios limites mágicos, e com isto, enquanto divindades aéreas e/ou aquáticas, interiorizadas, atravessaram “o rio e a ordem que o rio exercia na floresta” (atravessaram as lembranças do primeiro narrador Ribamar e o texto que seria apresentado aos leitores).