NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon

 

NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi

 

 

Ferreira foi o maior propagandista de si. Não eram as mulheres o que ele deveras amava, mas a Glorinha, e todos o fazem por diversos motivos a seu dispor. Suas ambições nela se concentravam. E apesar de filho de uma família de classe média humilde, foi erguido ao podium, casou-se com a Lambisgóia, ou melhor, com a mais sólida fortuna da terra, que o jovem soube como ninguém se fazer amar pelo sogro, que viu nele a personificação da inteligência, lealdade, valor, que o igual entende o igual, e quanto mais corrupto mais leal ao tipo de capitalismo ali praticado, na época, e o velho o amou durante toda a vida, como a um filho, mesmo depois que ele se separou da filha, conforme vai-se ver.[i]

 

O capítulo processa-se por meio do discurso da duração atuante (o que os críticos, avaliadores de grandes epopéias, denominam como presente histórico). O advogado Ferreira é/será um elo importante para o desenrolar do relato ficcional rogeliano, porque, por exigências do narrar pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, sua figura fará parte dos personagens/“corruptosmais leaisao tipo de capitalismo ali praticado, na época”. Somente este personagem, aparentemente passageiro ao longo do romance, ofereceria matéria importante sobre o assunto que ora está a movimentar-me, neste meu capítulo sobre o Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em oposição aos Limites Ilimitados do Manixi ficcional. Entretanto, o personagem de valia às minhas reflexões é Pierre Bataillon, inserido, por sua vez, no reduto dilatado do personagem maior da ficção rogeliana: o Seringal Manixi.

O crítico literário brasileiro Eduardo Portella, em meados dos anos setenta do século passado (século XX), criou a expressão “Limites ilimitados da Teoria Literária”[ii], para caracterizar o impasse teórico-crítico (e, conseqüentemente, a nova abordagem interpretativa) destinado ao desvelamento das camadas ocultas do texto literário, impasse este instaurado no Brasil, com o advento dos renovados Estudos Hermenêuticos do Texto Literário. A abordagem teórico-literária defendida, naquele instante, por Eduardo Portella, se constituía em oposição à delimitação e domínio estruturalista dos dogmáticos conceitos analíticos que por aqui se alastravam (e restringidamente continuam imperando, até o momento). Retomo a nomenclatura portelliana porque, neste meu capítulo sobre o personagem Pierre Bataillon e o espaço ficcional do Manixi (o estupendo Palácio e as terras que o rodeiam), decidi-me pela expressão (confiando que o proprietário de fato desta significação teórico-crítica veja nesta minha adequação um reconhecimento reflexivo da Teoria de Inclusão do Silêncio, uma ciência da literatura, fenomenológica por ele dignificada). A determinação em utilizar a expressão de Eduardo Portella aqui se justifica, visto que, por meio da denotação paradoxal dos dois termos justapostos, e ainda como testemunha desse impasse teórico-doutrinário ocorrido nos meios intelectuais brasileiros nos anos setenta, permiti-me compreender a dilatada consciência interativa, de Rogel Samuel (aqui realçada). Ao idealizar ficcionalmente o personagem Pierre Bataillon, o senhor das terras do Manixi (a ilimitada, inominável, espetacular dimensão ficcional deste primeiro espaço geográfico de O Amante das Amazonas), o ficcionista de origem manauara o colocou em uma realidade extra-vital, oriunda de um imaginário-em-aberto dimensionado, caracterizando assim o pano de fundo das narrativas da pós-modernidade, propensas à manifestação de cenários grandiosos (aquilo que os críticos atuais chamam de simulacro ficcional).

Sobre esta minha adesão a um ponto de vista crítico abrangente, interdisciplinar (recuperado de diretrizes fenomenológicas, para interagir com a representação do poder político de Pierre Bataillon e com a dimensão extraordinária do Manixi, enquanto espaço geográfico ficcional diferenciado e, ao mesmo tempo, submisso às regras do Capitalismo Primitivo de base familiar do início do século XX, que por ali imperava, exercendo, por conseguinte, poderes de vida e de morte), será válido lembrar, aqui, a indução teórico-crítica de Roberto Machado, em sua “Introdução: Por uma genealogia do Poder”, sobre a “teoria geral do poder” de Michel Foucault, percebida como importante na nona edição brasileira de Microfísica do Poder.

 

A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de Foucault. Surgiu em determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação de objetivos teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não eram explicitamente colocados, complementando o exercício de uma arqueologia do saber pelo projeto de uma genealogia do poder.

 

Qual a grande inovação metodológica assinalada, em 1961, pela História da Loucura? A resolução de estudar ─ em diferentes épocas e sem se limitar a nenhuma disciplina ─ os saberes sobre a loucura para estabelecer o momento exato e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Projeto este que deixou de considerar a história de uma ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir de origens que se perdem no tempo e são alimentadas pela interminável busca de precursores. Mas que também se realizava sem privilegiar a distinção epistemológica entre ciência e pré-ciência, tendo no saber o campo próprio de investigação. O objetivo da análise é estabelecer relações entre os saberes ─ cada um considerado como possuindo positividade específica, a positividade do que foi efetivamente dito e deve ser aceito como tal e não julgado a partir de um saber posterior e superior ─ para que destas relações surjam, em uma mesma época ou em épocas diferentes, compatibilidades e incompatibilidades que não sancionam  ou invalidam, mas estabelecem regularidades, permitem individualizar formações discursivas. (...)

 

O Nascimento da Clínica, de 1963, retoma e aprofunda uma questão presente, mas pouco tematizada, no livro anterior: a diferença entre medicina moderna e medicina clássica. O estabelecimento e a caracterização desta ruptura são os principais objetivos desta nova investigação. E a mutação não se explica por um refinamento de noções, que puderam ser mais rigorosamente definidas, nem pela utilização de instrumentos mais poderosos, que tornaram possível conhecer algo até então desconhecido. (...)

 

As Palavras e as Coisas, de 1966, radicaliza este projeto. Seu objetivo é aprofundar e generalizar inter-relações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais. Tese central do livro: só pode haver ciência humana ─ psicologia, sociologia, antropologia  ─ a partir do momento em que o aparecimento, no século XIX, de ciências empíricas ─ biologia, economia, filologia ─ e das filosofias modernas, que têm como marco inicial o pensamento de Kant, tematizaram o homem como objeto e como sujeito de conhecimento, abrindo a possibilidade de um estudo do homem como representação. Isso pode parecer enigmático, mas o que interessa aqui é assinalar que o propósito da análise arqueológica, tal como foi realizada neste livro [As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault], consistia em descrever a constituição das ciências humanas a partir de uma inter-relação de saberes, do estabelecimento de uma rede conceitual que lhes cria o espaço de existência, deixando propositalmente de lado as relações entre os saberes e as estruturas econômicas e políticas.[iii]



[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 50
[ii] PORTELLA, Eduardo (Org.). “Limites Ilimitados da Teoria Literária”. In: Teoria Literária. 1. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
[iii] MACHADO, Roberto. “Introdução: Por uma genealogia do Poder”. In.: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990: XII - IX.