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Sobre o cogito(3): Quando se chega a este estágio de repouso ativado (ou repouso fervilhante), o ser, aquele já desenvolveu tais capacidades de pensamento, poderá conseguir quase tudo o que necessita no plano da vida consciente. Por isto, Bachelard (A DIALÉTICA DA DURAÇÃO) afirma que o indivíduo que alcança esse nível de conhecimento de sua atividade psíquica passa a ter uma particular felicidade. No cogito(3), plano lacunar, quase espiritual (abeirando-se do espiritual), o que o indivíduo imaginar, em termos de idéia, já toma uma forma definida, que poderá adquirir vida no mundo dos fenômenos, se ele assim o desejar. O que este indivíduo imaginar, no plano do pensamento puro, ao nível do cogito(3), tem tanta força, aparece tão bem definido, que ele saberá como dar forma a essa imaginação no mundo real. O ser especial, singular, o que consegue alcançar o cogito(3), não tem necessidade da representação (primária) da realidade vital — ordinária, linear —, pois a representação desse cogito se basta da forma que foi alcançada no tempo do pensamento, que é tão definida quanto seria se ela fosse representada no plano do tempo vital. É nesse espaço do pensamento (ainda nos limites da realidade vital, mas acima do tempo vital) que a vida espiritual (cogito(4)) torna-se estética pura, vida esta que só se tornará possível dentro do tempo descontínuo. Penso, revigorada por tais idéias, na literatura do século XX e início do século XXI, especificamente, como oriunda do cogito(4), plano da espiritualidade, descontínuo, mas formalizada esteticamente no cogito(3), plano do pensamento puro e inovador.

 

A instantaneidade das formalizações bem ordenadas do tempo do pensamento não admite sucessão de níveis; os níveis ficam juntos numa ordem própria, tendendo para fora do eixo horizontal. É por causa dessa tendência para fora que existe a percepção intuitiva de uma sucessão de níveis. Em cada nível, existe uma qualidade psicológica que, em nível um, por exemplo, por estar preso à realidade, preenche as lacunas, para manter a idéia linear de continuidade. Para quem está no cogito(1), ou mesmo no cogito(2) (cogito este já propenso ao pensamento lacunar), a vida temporal de quem se encontra no cogito(3) denota a presença de espaços mentais vazios. Nesse estágio, o pensamento transmutativo (privilégio do cogito(2), mas poucas vezes reativado) se evidencia com maior riqueza. Toda a vida do pensador (pensador singular, original) será fundamentada na força das formas (pensamentos) ainda não conceituadas, as quais darão coerência a sua vida mental, dissociada das razões corriqueiras.

 

Por estas razões, invadi esta dimensão particular do ficcionista Guimarães Rosa, impulsionada pelos estudos de Bachelard sobre a duração, desenvolvendo o que chamarei aqui de Psicanálise da Criação. Da filosofia bachelardiana retirei a minha idéia de uma consciente ascensão do escritor aos últimos estágios do pensamento, próximos ao cogito(4) da espiritualidade, plano totalmente lacunar, consentindo assim, a si mesmo, uma continuidade psíquica de suas origens, no âmbito da  Arte.

 

A força das formas desconhecidas (não conceituadas, intuídas), força que oferece coerência à vida lacunar, dissociada das razões corriqueiras, é o que Bachelard chama de estética pura, usando outras palavras, a transcendência formal/material, a ultrapassagem do tempo (sucessivo) das formas reais. O que se intui no cogito(3), para ter coerência, para ter duração e representação no mundo vital, terá de ser justificado por razões (juízos, conceitos), as quais passaram antes por atitudes psicológicas formalizadas e diversificadas. A razão, proveniente da definição psicológica, dará apoio (consistência) às intuições vislumbradas pelo pensador.

 

Fundamentando-me na idéia da transcendência dos pensamentos formal e material (o além do cogito(3)), desenvolvi a tese da sobrecarregação dinâmica dos significados, ou seja, quando se sobrecarrega a dinâmica dos significados, a linguagem transcende o discurso numa dimensão novamente inicial (do Desconhecido, do Abismo, do Silêncio, do Não-dito, do Amorfo), e esta transcendência, ao contrário de esconder o seu significado, como enigma, dá às claras o seu sentido como Arte, realizando uma transformação que impulsiona o Leitor ao exacerbamento da realidade, ultrapassando a Loucura e efetivando depois uma ascensão ao concreto da forma literária, isto é, na recriação literária dos três cogitos socialmente aceitos.

 

Quero realçar, aqui, a minha própria leitura sobre esta ascensão ao concreto da forma literária, realizada primeiramente pelo Artista literário, ao formalizar seus pensamentos criativos, e em seguida pelo Leitor, ao compactuar e colaborar com o texto lido. Depois de ter conhecido a escalada dimensional do escritor Guimarães Rosa, brasileiro, nascido em um pequeno burgo incrustado no Sertão das Gerais, até o último estágio do pensamento permitido pela razão, o Leitor conseguirá também alcançar o mundo do imaginário-em-aberto, aproximando-se, por intermédio da leitura, do plano descontínuo da espiritualidade.

 

O ficcionista moderno, preso a seu momento estético, alcança a região limítrofe que separa o plano vital do plano da espiritualidade, mas não se afasta do cogito(3), cogito vital, ao contrário, reafirmo, equilibra-se entre os dois cogitos (cogito(3) e cogito(4)), concretizando o que vislumbrou no mundo amorfo e descontínuo, sob a forma ficcional.

 

Quero afirmar que não é o texto (literatura-arte), mas é o Artista ficional brasileiro Guimarães Rosa, inserido em uma realidade insólita, lacunar, de país terceiromundista (décadas de 50 e 60), que ultrapassa o terceiro cogito, aproximando-se do tempo espiritual (cogito(4)). Por sua ligação vital com a História do século XX, ele adquiriu o privilégio de intuir e recriar, literariamente, os descontínuos de sua própria vivência de brasileiro, desde a infância no sertão até aos mais elevados cargos sociais. Na verdade (não seria incorreto afirmar), quem ultrapassa o terceiro cogito é a realidade brasileira, além do narrador e de suas narrativas. A nossa lógica não se identifica completamente com o racionalismo europeu. No Brasil, mesmo nas cidades, nas camadas primárias, é a lógica do Sertão (Mitos, Ambigüidades, Imagens, Símbolos) que completa o imaginário da população e o seu mundo referencial.

 

No que se refere a minha distinção entre sujeito e indivíduo, penso que alguns esclarecimentos serão necessários. Os termos sujeito e indivíduo farão parte do desenvolvimento de minhas reflexões, significando cada um os cogitos que compõem a vida emocional-racional do ser. O sujeito, simbolizando o ser adstrito às leis e normas (conformado e limitado ao cogito(1)), e indivíduo, simbolizando o ser possuidor de idéias próprias, particulares, componente de um pequeno grupo que busca a evolução do pensamento, cada um a seu modo, possuidor, enfim, de uma consciência singular.

 

O conceito de imaginação, recuperado nestas páginas para uma compreensão teórico-filosófica da obra de Guimarães Rosa, prende-se à orientação bachelardiana, que a vê como faculdade de deformar imagens, ao invés de formar imagens. (A faculdade de deformar imagens não poderá ser avaliada ou interpretada, aqui, depreciativamente. Bachelard não desenvolveu suas idéias filosóficas submetido a juízos preestabelecidos). A formação de imagens liga-se mais à percepção do sujeito integrado ao Mundo (seja ele representante de qualquer segmento da Arte), e sua imaginação seria simplesmente evasiva, aberta, submetida às substâncias sociais. A imaginação dinâmica do Artista literário brasileiro do século XX (literatura-arte), poderosamente deformadora, ao contrário, é um convite a uma incursão-excursão (evidentemente, submetida ao racionalismo da consciência singular) rumo ao Desconhecido (imaginário-em-aberto, mundo do silêncio, mundo do Vazio Criador, ou qualquer denominação oriunda das inúmeras nomenclaturas teórico-críticas já existentes).