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LUCILENE GOMES LIMA

 

(Foto de Ferreira de Castro, autoria desconhecida)

 

Neste trabalho, optamos por uma análise detalhada das obras A selva, Beiradão e O amante das amazonas por serem essas três obras as mais representativas do aprofundamento e diversificação do tema do “ciclo da borracha” dentro de uma extensa trajetória ficcional. Para efeito de estudo, dividimos essa trajetória em três fases. A primeira compreendendo as publicações de O paroara, em 1899, até A selva, em 1930; a segunda, a partir da publicação de Terra de Icamiaba, em 1934, até Coronel de barranco, em 1970; e a terceira, a partir da publicação de O amante das amazonas, em 1992. Nosso critério de divisão dessas fases orienta-se não apenas por uma periodicidade temporal. Consideramos o conteúdo das obras e a sua forma de abordagem. Na primeira fase, o tema é abordado dentro de uma seqüência epigônica desencadeada por Euclides da Cunha com À margem da história, obra em que denuncia a espoliação sofrida pelo seringueiro. Apesar de ter sido publicada em 1909, sendo, portanto, posterior a Inferno verde (1908), de Alberto Rangel, é possível perceber a identificação de estilo e de idéias entre os autores e considerar Rangel seguidor de Cunha.[1]

Cunha e Rangel inspiraram, por sua vez, Carlos de Vasconcelos, em Deserdados (1921) que copia-lhes a opulência da linguagem. Desta tendência epigônica, fica à margem Ferreira de Castro, autor português que abordou o tema motivado por documentar sua própria experiência no seringal.

As obras da segunda fase, ao contrário das da primeira, não se delineiam pela continuidade de um estilo. Mesmo algumas delas possuindo uma dose de pensamento social reformador, como Terra de Icamiaba, Terra de ninguém, Um punhado de vidas, apresentam autores com estilos diversos. Nessa fase, portanto, as obras representam mais uma experiência de cada autor do que a continuidade da tradição de um estilo. A exceção ocorre em No circo sem teto da Amazônia (1955) que ainda traz o descritivismo e a linguagem carregada à semelhança dos estilos de Euclides da Cunha e de Alberto Rangel.

Incluímos na terceira fase apenas a obra O amante das amazonas, omitindo as abordagens episódicas do tema em parte dos romances Terra firme e Regime das águas e nos contos incluídos em O tocador de charamela por entendermos que o romance Coronel de barranco é um marco que baliza a segunda fase e que a abordagem do tema nessas obras posteriores é menos uma continuidade do ciclo ficcional do que recorrência isolada. Apontamos a terceira fase em O amante das amazonas por essa obra atestar um novo estágio de abordagem do tema do ciclo em que tanto o tema se renova quanto a estrutura narrativa sofre uma acentuada reorganização.

A selva, Beiradão e O amante das amazonas, abrangendo as três fases, expressam diferenciais de abordagem em cada uma delas. As três obras são representativas de três percepções sobre o ciclo, a do escritor estrangeiro, do escritor político e do escritor estudioso da literatura. Nessas três percepções, um ponto em comum: a experiência, direta e indireta, do seringal. Direta, em Ferreira de Castro e Álvaro Maia, que o conheceram pessoalmente. Indireta, em Rogel Samuel que o reconstitui pelo caminho da memória do avô, um rico comerciante da borracha. Passamos a analisar as três percepções e os consecutivos delineamentos que deram às obras.

 

 

 

 

 

 

 A selva: a visão de um imigrante português sobre o ciclo da borracha

 

            Ao escolher a Amazônia como espaço de representação de seu romance, Ferreira de Castro não o fez como um absentista[2], baseou-se na própria vivência de quatro anos num seringal localizado no rio Madeira que, coincidentemente com o topônimo dado ao local na ficção, também se chamava Paraíso. No Pórtico de abertura do romance, o autor declara: “Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva amazônica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida [...]”[3]. A edição comemorativa dos vinte e cinco anos de publicação da obra, em 1955, traz em “Pequena história de A selva” uma configuração maior do tom confessional que o romancista dá à criação do romance. Nesse texto, que é uma contribuição ao estudo da formação de um escritor, Ferreira de Castro expõe o quanto o contato e a experiência com a natureza amazônica impressionaram o seu espírito, impelindo-o a transformar em matéria ficcional todas as sensações de um mundo que não conseguia esquecer. Ao mesmo tempo, revela também um temor de registrar essas sensações e assim revivê-las:

 

[...] durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras. Um medo frio, que ainda hoje sinto



[1] Hélio Viana, em conferência realizada em 1971 no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por ocasião do centenário de nascimento de Alberto Rangel, defende a originalidade de estilo deste autor, alegando principalmente que seus estudos amazônicos foram anteriores aos de Euclides da Cunha, uma vez que este foi à Amazônia, comissionado pelo Ministério da Relações Exteriores, em missão de demarcação de limites, em 1905, quando Rangel já ali se encontrava. Na verdade, a aproximação que existe entre as obras desses autores não se limita à discussão de quem teve precedência na chegada à região amazônica, nem na data de publicação das obras. Sobre este último fato, basta destacar que À margem da história foi publicada postumamente. As obras de Cunha e de Rangel aproximam-se porque professam em sintonia o discurso positivista sobre o meio amazônico.

[2] Na definição de Mário Ypriranga Monteiro, o absentismo se caracteriza pela falta de vivência que tem o autor do meio que enfoca em sua obra. Dessa forma, ele cria através do talento ou da imaginação ou baseado em conhecimentos que não os da experiência direta. O autor absentista pode ser total ou parcial, sendo o último aquele que, apesar de ter estado no meio que retrata, conheceu-o superficialmente. Monteiro chama a atenção de que o autor absentista também pode criar uma falsa percepção da realidade. Não condena o trabalho de criação do absentista total, mas faz notar “que todo aquele que escreve, mesmo tratando-se de ficção, arca com a responsabilidade de transmitir informações, de ilustrar, ou de recriar estados sociais, de manter-se numa posição de respeito à fidelidade de um compromisso não escrito mas aberto às sanções de fato (e até de direito, não raro), compromisso esse que se espera contenha apreciável volume de interesse honesto em permutar com o leitor, usuário que espera por sua vez encontrar na obra-de-arte um motivo estético ou algo mais que isso, componente satisfatória , uma terapêutica [...]” (Fatos da literatura amazonense, p. 65).

[3]  José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,  p. 21.