A Maçãzinha
Por: Cunha e Silva Filho Em: 15/07/2008, às 07H51
Depois de não encontrar meu medicamento nas duas farmácias que ficam no cruzamento da S. Pedro com a Pires de Castro, entrei no carro e, fulo de dor, acelerei em direção da Frei Serafim. Era meia-noite e meia. No sinal luminoso, dobrei à esquerda. Quando ia chegando à frente do Colégio das Irmãs, o semáforo que fica no cruzamento da Frei Serafim com a Arlindo Nogueira começou a piscar. Fui diminuindo a marcha, mas não pretendia parar, quando ouvi alguém gritar meu nome: “Marcelo!” Parei e vi, sentado num banco, o Raimundão do Jóquei. Puxa vida! Que azar! Encontrar logo o Raimundão do Jóquei! Uma das piores figuras de Teresina em todos os tempos! Um cara que deu porrada na própria mãe e não respeitava a memória do pai. O cara que desencaminhou a Cátia Jamille, a célebre Maçãzinha, a garota mais bem-educada e de beleza mais primorosa que já existiu nesta cidade. Ah! A Maçãzinha, que, quando aparecia nos finais de tarde, aqui mesmo neste passeio central desta avenida, no começo dos anos 70, deslumbrava a todos e não se deslumbrava nem se envaidecia com a magnética e suave atração que sua beleza irradiava! A Maçãzinha, que nunca levantava a voz, que era amiga de todos, que reunia em si o meigo ardor de uma ninfeta e a assexualidade angelical como se fosse também uma irmã da gente. Pois esse primor de pessoa, por um desses inexplicáveis desencontros da vida, apaixonou-se por esse miserável que acabou de gritar meu nome.
Eles se conheceram aqui mesmo, apresentado por um amigo comum aos dois – o Saraiva, também conhecido por Mister Moon. Ela estudava no Colégio das Irmãs e era uma das melhores alunas; ele, no Diocesano e de lá foi expulso por indisciplina.
__ Tá indo pra onde, Marcelo?
__ Pra casa
__ Me dá uma carona
__ Tá morando onde?
__ Na Ilhota.
__ Mas eu tou indo pro Matadouro, cara! É um rumo muito diferente do teu!
__ Marcelo, essa hora não tem mais ônibus, e eu tou liso, não tenho como pegar um TX.
__ Morando na Ilhota, bairro de rico, e me dizendo que está liso!!!
__ Marcelo, eu não moro em nenhum daqueles condomínios de luxo, não, cara! Moro numa casa simples na Ilhota.
__ Entra.
Ele deu a volta pela frente do carro e entrou.
O sinal abriu, segui em frente, fiz o retorno passando pela frente da Igreja de S. Benedito.
__ Minha vida mudou muito, Marcelo.
__ Como?
__ Mamãe morreu, não tenho mulher nem emprego, estou na sarjeta.
__ Mas e a herança que teus pais deixaram, cara?!
__ Não resta mais nada.
__ Como não resta mais nada, se era uma fortuna imensa?
__ Não estou a fim de te contar toda a estupidez que fiz para estourar aquela fortuna.
__ Por quê?
__ O lixo, quanto mais se mexe nele, mais ele fede. Deixa pra lá.
Já íamos passando em frente ao HGV, quando ele me fez um estranho pedido:
__ Marcelo, procura tratar muito bem a tua mulher, cara!
__ Mas eu a trato bem, cara! Estamos bem e eu gosto dela. Até estranho que tu me peça isso, cara! Pois tu sempre tratou mal as mulheres!
__ Mas é justamente por isso! Olha, Marcelo, depois que a Cátia morreu, não consegui mais nenhuma mulher que preste.
__ Não será você que não presta pra elas?!
__ Não! Já te disse que mudei! Deixei de beber, voltei a ser católico praticante, mas estou com as duas piores coisas que podem acontecer a um homem: solidão e desemprego.
A farmácia em frente ao Hotel dos Oficiais estava aberta. Entrei, comprei o remédio e tomei-o ali mesmo no balcão, pois a dor era grande.
Quando voltei pro carro, Raimundão me pediu cem reais emprestado.
__ Quarenta e sete reais é tudo que tenho.
__ Serve! Pode me arranjar?
__ Toma!
__ Obrigado. Assim que puder, te pago!
Deixei o Raimundão na esquina do Rio Poty Hotel e fui pra casa. Janine dormia a sono alto. Fui à cozinha, abri a geladeira, peguei uma maçã e me pareceu ver, em sua casca rosada, um rostinho lindo que eu não via há mais de trinta anos.