Depois de não encontrar meu medicamento nas duas farmácias que ficam no cruzamento da S. Pedro com a Pires de Castro, entrei no carro e, fulo de dor, acelerei em direção da Frei Serafim. Era meia-noite e meia. No sinal luminoso, dobrei à esquerda. Quando ia chegando à frente do Colégio das Irmãs, o semáforo que fica no cruzamento da Frei Serafim com a Arlindo Nogueira começou a piscar. Fui diminuindo a marcha, mas não pretendia parar, quando ouvi alguém gritar meu nome: “Marcelo!” Parei e vi, sentado num banco, o Raimundão do Jóquei. Puxa vida! Que azar! Encontrar logo o Raimundão do Jóquei! Uma das piores figuras de Teresina em todos os tempos! Um cara que deu porrada na própria mãe e não respeitava a memória do pai. O cara que desencaminhou a Cátia Jamille, a célebre Maçãzinha, a garota mais bem-educada e de beleza mais primorosa que já existiu nesta cidade. Ah! A Maçãzinha, que, quando aparecia nos finais de tarde, aqui mesmo neste passeio central desta avenida, no começo dos anos 70, deslumbrava a todos e não se deslumbrava nem se envaidecia com a magnética e suave atração que sua beleza irradiava! A Maçãzinha, que nunca levantava a voz, que era amiga de todos, que reunia em si o meigo ardor de uma ninfeta e a assexualidade angelical como se fosse também uma irmã da gente. Pois esse primor de pessoa, por um desses inexplicáveis desencontros da vida, apaixonou-se por esse miserável que acabou de gritar meu nome.

            Eles se conheceram aqui mesmo, apresentado por um amigo comum aos dois – o Saraiva, também conhecido por Mister Moon. Ela estudava no Colégio das Irmãs e era uma das melhores alunas; ele, no Diocesano e de lá foi expulso por indisciplina.

            __ Tá indo pra onde, Marcelo?

            __ Pra casa

            __ Me dá uma carona

            __ Tá morando onde?

            __ Na Ilhota.

            __ Mas eu tou indo pro Matadouro, cara! É um rumo muito diferente do teu!

            __ Marcelo, essa hora não tem mais ônibus, e eu tou liso, não tenho como pegar um TX.

            __ Morando na Ilhota, bairro de rico, e me dizendo que está liso!!!

            __ Marcelo, eu não moro em nenhum daqueles condomínios de luxo, não, cara! Moro numa casa simples na Ilhota.

            __ Entra.

            Ele deu a volta pela frente do carro e entrou.

            O sinal abriu, segui em frente, fiz o retorno passando pela frente da Igreja de S. Benedito.

            __ Minha vida mudou muito, Marcelo.

            __ Como?

            __ Mamãe morreu, não tenho mulher nem emprego, estou na sarjeta.

            __ Mas e a herança que teus pais deixaram, cara?!

            __ Não resta mais nada.

            __ Como não resta mais nada, se era uma fortuna imensa?

            __ Não estou a fim de te contar toda a estupidez que fiz para estourar aquela fortuna.

            __ Por quê?

            __ O lixo, quanto mais se mexe nele, mais ele fede. Deixa pra lá.

            Já íamos passando em frente ao HGV, quando ele me fez um estranho pedido:

            __ Marcelo, procura tratar muito bem a tua mulher, cara!

            __ Mas eu a trato bem, cara! Estamos bem e eu gosto dela. Até estranho que tu me peça isso, cara! Pois tu sempre tratou mal as mulheres!

            __ Mas é justamente por isso! Olha, Marcelo, depois que a Cátia morreu, não consegui mais nenhuma mulher que preste.

            __ Não será você que não presta pra elas?!

            __ Não! Já te disse que mudei! Deixei de beber, voltei a ser católico praticante, mas estou com as duas piores coisas que podem acontecer a um homem: solidão e desemprego.

            A farmácia em frente ao Hotel dos Oficiais estava aberta. Entrei, comprei o remédio e tomei-o ali mesmo no balcão, pois a dor era grande.

            Quando voltei pro carro, Raimundão me pediu cem reais emprestado.

            __ Quarenta e sete reais é tudo que tenho.

            __ Serve! Pode me arranjar?

            __ Toma!

            __ Obrigado. Assim que puder, te pago!

            Deixei o Raimundão na esquina do Rio Poty Hotel e fui pra casa. Janine dormia a sono alto. Fui à cozinha, abri a geladeira, peguei uma maçã e me pareceu ver, em sua casca rosada, um rostinho lindo que eu não via há mais de trinta anos.