Um certo Gerson Gomes Pereira

Um certo Gerson Gomes Pereira

 

Elmar Carvalho

 

1º Ato

 

O amigo e magistrado Édison Rogério Leitão Rodrigues, algum tempo atrás, me convidou para integrar o grupo de WhatsApp denominado Amigos da Sabedoria, composto por ele e pelos Promotores de Justiça Flávio Teixeira de Abreu Júnior e Gerson Gomes Pereira. Este último não era meu conhecido. A denominação do grupo é modesta e apropriada, pois indica que seus integrantes não se arvoram de ser sábios, mas tão-somente amigos da sabedoria, o que já é muita coisa, sobretudo nesta época em que tolos se metem a opinar sobre todo e qualquer assunto, muitas vezes de forma estapafúrdia, irracional e rasa.

O Edison Rogério é amante dos livros, mormente de literatura, com destaque para os de poesia e romances. É certo que o Flávio é uma pessoa antenada e interessada em arte e cultura. Sobrinho do saudoso amigo e notável poeta Cid Teixeira de Abreu. Logo no início de minha admissão ao grupo, percebi que as postagens giravam mais em torno de assuntos filosóficos e teológicos, e eram, em sua maioria, da lavra do Gerson Gomes Pereira, que iluminava certos aspectos abordados e esclarecia as dúvidas e questionamentos, que lhe eram trazidos.

Cedo percebi que Gerson não era um mero diletante, um simples leitor de almanaques e orelhas de livro. Suas postagens, embora concisas, não eram superficiais. Ao contrário, analisavam em profundida as questões que eram submetidas ao seu crivo. Suas respostas faziam remissão aos textos dos grandes filósofos e teólogos, e muitas vezes eram ilustradas através de citações literais.

Contudo, eu notava que a sua erudição e explanações não eram calcadas na vaidade e nem no prazer vazio de “vencer” um debate, uma discussão, mas em esclarecer, em transmitir conhecimentos sem jactância e sem ostentação, com didatismo, clareza e simplicidade. Para mim, as suas preleções seriam semelhantes às de um professor que desejasse fazer com que o aluno o superasse em conhecimento, e por isso mesmo se esmerasse em lhes injetar a aprendizagem da forma mais eficaz possível.

Buscou ler os escolásticos, os pais da Igreja, sobretudo Agostinho, e os grandes filósofos, de maneira especial os da antiguidade, mormente a trindade Sócrates, Platão e Aristóteles, mas colocando este num podium mais elevado. Em sua ótica, Aristóteles, considerado uma máquina de pensar, teria analisado as questões mais importantes da filosofia em todas as épocas.

Instigado pelo colega Flávio Teixeira, enfrentou assunto intrincado, labiríntico e lodoso, afeto talvez mais à aceitação pela Fé, in casu, a Graça, discorrendo em profundidade sobre esse melindroso e especulativo tema, tão abstrato e intangível quanto o tempo, do qual temos uma ideia, mas que se torna inefável, quando tentamos conceituá-lo ou discorrer sobre a sua natureza. Em suas explicações, citou os grandes teólogos, a Bíblia, mas, claro, fez uso também de suas próprias palavras, de sua inteligência, intuição e discernimento. Diria que fez tudo para convencer o Flávio, não pela satisfação de convencer alguém, mas quase como se estivesse lutando pela salvação de uma alma ou, ao menos, pela sua iluminação.

 

2º Ato

 

Gerson Gomes Pereira nasceu em 28 de fevereiro de 1976, filho de Cícero Gomes Pereira e Benedita Maria de Jesus Pereira. Pertence à estirpe Gomes (de Sobral), a que pertence uma de suas grandes admirações musicais, Belchior. Disse-me ele, em tom confessional: “Eu sou negro. Meu pai é negro. Minha bisavó era negra e escrava”.

O local da casinha de taipa de seus pais ficava a cerca de oitocentos metros atrás de onde hoje se ergue o imponente prédio do Tribunal de Justiça do Piauí, localizado na Avenida Padre Humberto Pietrogrande, 3509. Podia ser considerado uma zona rural, pois ficava dentro de uma verdadeira floresta. Ainda hoje, no entorno, pode ser visto resquício dessa mata. O proprietário do imóvel onde ficava a residência pertencia a uma ilustre família teresinense.

A mãe de Gerson vivia da agricultura e seu pai de pesca, exercida no rio Poti, que passava a um quilômetro desse local. Além de Gerson, o casal teve mais nove filhos, um dos quais sofria de doença mental grave. Não bastasse essa situação de extrema penúria, a fatalidade entregou aos cuidados de seus pais mais quatro garotos, sobrinhos do casal, em virtude da morte prematura de seus pais. Segundo a expressão do próprio Gerson, a família trabalhava para comer e comia para trabalhar. Em sua descrição, a “casa era um grande vão com uma travessa à espera de mais uma rede”.

Aos dez anos de idade, a água que ele bebia era tirada de uma cacimba e esfriada em um pote, de onde era retirada com o coco (uma espécie de caneca de alumínio com uma alça do mesmo material). Só recebia informações por um rádio de pilha, quando havia pilhas com carga. A partir dos seus seis meses de vida (e até os quatro anos), tinha de ser levado para a Casa Mater, porquanto fora vítima de severas queimaduras, cujas cicatrizes ainda hoje podem ser vistas. Com esse incêndio da casa, que o vitimou em tenra idade, as poucas coisas que a família tinha minguaram mais ainda. Aos seis anos, tinha de enfrentar seis quilômetros (ou 12, considerando a volta) para chegar ao colégio mais próximo, localizado na Avenida Higino Cunha. Parte desse percurso ele o fazia por cima da estrada de ferro. Passava sobre a estreita ponte, que fica paralela à ponte Wall Ferraz, sempre atento ao ruído da locomotiva, cujo encontro lhe poderia ser fatal. Caso avistasse o trem ou lhe ouvisse o barulho, teria que correr para o salva-vidas mais próximo, sob pena de morrer.

Neste ponto, desejo transcrever o que ele próprio me revelou através de WhatsApp: “Em minha casa fazíamos o revezamento de farda escolar e de conga (tênis). Eu, mais novo, tinha de completar o pé na conga com papel. Para minha mãe, era dureza arrumar dinheiro para comprar o bolso com o brasão do Estado, condição para entrar no colégio. // Certa vez, depois de meses aguardando um passeio, aos 7 anos, fui barrado na entrada do ônibus para a fábrica da Coca-Cola, porque minha camisa não tinha o brasão”. Esse relato é pungente, nos causa comoção, e relutei sobre se devia transcrevê-lo nesta crônica, mas entendi que era necessário para mostrar o caráter do Gerson, que é um perfeito contraste com o de muitos representantes das chamadas “geração Nutella” e “geração Tik Tok”. Gostava de ler, mas só podia fazê-lo quando encontrava revista no lixo dos apartamentos, que ficavam na proximidade de sua escola.

Em sua adolescência seus pais foram expulsos do local onde moravam, o que trouxe ainda maiores dificuldades à família, que vivia de roça e pesca.  Passo-lhe a palavra: “Passamos muitas necessidades. Meu pai teve que tentar a vida fora, na construção civil. Os irmãos mais velhos também correram o mundo. As irmãs adotivas tiveram que buscar casas de família para morar e trabalhar”. Gerson continuou trabalhando na referida loja de material de construção. Precoce e inteligente, por essa época chegou a lecionar para jovens que buscavam se preparar para concurso de sargento ou de cadete das Forças Armadas, numa sala de aula improvisada. Esse mister magisterial durou dos 13 aos 18 anos.

Aos 11 anos, começou a trabalhar numa loja de material de construção, de nome Start, localizada na Avenida Nossa Senhora de Fátima, perto do balão da Universidade Federal do Piauí, onde hoje funciona a Drogasil, o que é uma distância muito grande para ser percorrida por um menino, em sua bicicleta. No final do expediente tinha de retornar imediatamente, porquanto, nessa época, estudava na escola da Fundação Bradesco, que não admitia atraso. Sequer tinha tempo para tomar banho. Cursava Administração de Empresas, ensino técnico de nível médio. Esse curso lhe possibilitou ingressar como estagiário no Banco do Nordeste do Brasil, que, segundo ele  próprio, lhe foi um divisor de água, uma vez que passou a conhecer outros ambientes, outras pessoas e a ter outras perspectivas de vida. Não lhe sendo o dinheiro do estágio suficiente para pagar um cursinho de pré-vestibular, usou a sua remuneração para comprar livros, que lhe possibilitaram passar no vestibular para Direito, quando sua vida começou a mudar para melhor.

Todas essas dificuldades e percalços, que ele teve de enfrentar e vencer, certamente contribuíram para lhe moldar a personalidade. Sem dúvida poderia ter se tornado uma pessoa revoltada, amarga, cheia de recalques e traumas, a queixar-se da vida e de suas circunstâncias, porém isso não aconteceu. Ao contrário, é um cidadão amável, cordato, amante do bem, do bom e do belo, além das artes e da cultura, sobretudo literatura e música, ele próprio sendo violonista e poeta.

Em resumo, é um perfeito exemplo de superação, para usarmos um chavão da moda.

 

3º Ato

 

Em sua gradativa ascensão, sem firulas e sem guinadas súbitas e vertiginosas, ocupou os cargos de empregado de loja de material de construção (aos 11 anos), estagiário do BnB, policial civil, consultor jurídico de gabinete de desembargador (cargo em comissão), Procurador Federal e Promotor de Justiça.

Dos 13 aos 18 anos, em sala de aula improvisada, ministrou aulas preparatórias para concurso de admissão a cursos de sargento das Forças Armadas. Depois, foi professor de matemática financeira no SENAC, bem como exerceu o magistério na Universidade Estadual do Piauí e em cursos preparatórios do CEV para concursos da magistratura, do ministério público e de procuradorias.

Como consultor jurídico, serviu no gabinete do Des. Nildomar da Silveira Soares, onde colheu importantes experiências jurídicas e de vida, vindo a se tornar um grande amigo do desembargador. Com o seu jeito afável e acolhedor, sempre lhano e simpático, despojado que o era de empáfia, Nildomar tinha uma postura (quase) paternal para com os seus subordinados. Mesmo após deixar o seu cargo, continuava se comunicando com o ex-chefe, principalmente por WhatsApp. Teve o ensejo de lhe enviar a seguinte mensagem de estímulo e conforto: “Não tenho dúvida de que o amigo e mestre chegou ao topo. Vê as coisas do alto. (...) Agora, certamente, tem meu amigo mais a ensinar do que antes. Já não tem tempo a perder”. Fui colega do Des. Nildomar na Academia Piauiense de Letras por vários anos, e sempre lhe admirei o trato cordial, que nos últimos anos mais parecia se aprimorar, como se ele estivesse em busca da santidade, talvez pressentindo que o termo de seus dias já se avizinhasse.

Do Des. Nildomar recebeu alguns livros de sua estima, quando ele se aposentou. Viu em sua estante a coleção monumental de 14 volumes do Tratado das Constituições Brasileiras, da lavra do jurista, poeta, historiador e romancista Cláudio Pacheco, natural de Campo Maior e membro da APL. Sendo Cláudio meu conterrâneo, fiquei orgulhoso quando o jurista Gerson Gomes Pereira me disse considerar essa obra do mesmo nível da do consagrado constitucionalista Pontes de Miranda.

No exercício de seu cargo de Procurador Federal em Brasília, graças a seu zelo profissional e preparo jurídico, Gerson foi convidado por um ministro do Supremo Tribunal Federal a integrar sua assessoria jurídica. Todavia declinou desse envaidecedor convite. Sua meta era retornar ao Piauí, para melhor prestar assistência a seus velhos pais. Para esse desiderato, fez concurso para ingressar no Ministério Público Estadual.

Seguindo as pegadas de seu passado e de seu destino, comprou um imóvel de seis hectares, no mesmo local onde se erguera outrora a casinha de seus pais, em que ainda remanescia fortes vestígios da floresta que ali vicejara. Construiu uma bela e grande casa, com espaços esportivos, inclusive um campo de futebol. Nesse imóvel plantou frondosas árvores frutíferas, um verdadeiro pomar, e conserva parte da floresta nativa. Casou e tem uma filha. Portanto, seguiu a boa recomendação do adágio: plantou árvores, tem descendência e escreveu um livro, titulado Curso de Formação para Procuradores Federais (Brasília, 2005).    

 

Epílogo

 

Por mensagem whatsappiana o magistrado Édison Rogério me convidou a participar de um jantar na casa do nosso bravo Gerson, com a presença apenas de membros do grupo Amigos da Sabedoria e familiares. Na sexta-feira passada, por volta das 19:30 horas, chegamos à residência do anfitrião, que já estava à nossa espera. Logo vi que ele era um tipo acolhedor e cordial, e constatei que sua voz era mansa e macia, sem nenhuma aspereza, como a denotar paciência e tranquilidade, circunstância que confirmou o que eu havia percebido através de seus poucos áudios postados no grupo. Na grande sala havia um violão e uma bateria, que pareciam indicar que ele não só era um amigo da sabedoria, mas também um devoto da musa Euterpe.

Ao entrar, vi uns aparelhos de ginástica, e como havia visto o bem-cuidado campo de futebol, não me contive e perguntei se o Gerson fazia jus ao nome que tinha; ou seja, se ele tinha as mesmas características pebolísticas do grande Gerson da Seleção Brasileira de 1970. O colega Édison foi logo se apressando em responder que sim; que o nosso anfitrião tinha as mesmas habilidades técnicas do seu xará. Não posso dizer que acreditei in totum, mas me esforcei para lhe dar algum crédito. Depois, fiquei sabendo que ele tem mesmo habilidade com a pelota. Melhor assim. In dubio, pro amigo.

Além das iguarias oferecidas pelos donos da casa, o Édison fez questão de levar um queijo da Canastra, oriundo das alterosas, que a princípio me pareceu duro como uma tábua. Contudo, depois de devidamente partido em pequenos pedaços, já não tinha essa dureza aparente. O certo é que degustamos um bom vinho e tivemos um “repertório” de iguarias, farto e variado.

Por um grande esforço pessoal, através de demoradas e profundas leituras, Gerson adquiriu um vasto conhecimento dos principais filósofos, sobretudo dos três grandes mestres da antiguidade clássica – Sócrates, Platão e Aristóteles – em cujo pedestal mais alto coloca este último. Portanto, posso afirmar que ele adquiriu esse amplo saber filosófico e teológico como autodidata, graças às suas persistentes leituras e inteligência arguta. Nele se conjugaram muito bem o esforço e a inteligência; não um esforço espartano, extenuante, mas prazeroso, agradável.

Fizemos parte dessa festa gastronômica e intelectual Gerson e sua esposa Nilcimaria, maranhense, natural de Fortaleza dos Nogueira, onde soube existirem belas e aprazíveis cachoeiras; o Juiz de Direito Édison Rogério e Vanda; o Promotor de Justiça Flávio Teixeira, velho conhecido, e sua consorte Leda, e este escriba, transformado em escrivão do festim.

O Édison, em mensagem recente, comparou esse evento ao que foi relatado no livro O Banquete, de Platão, que teria sido algo semelhante ao que vivenciamos na casa de Gerson.

Conversamos sobre temas diversos, tais como jurídicos, políticos, culturais, literários e artísticos. Em certos instantes a discussão se tornou acirrada, mas sempre de forma amigável. Para que o nosso se tornasse ainda mais semelhante ao banquete de Platão, poemas foram recitados e temas filosóficos debatidos.

Em determinado momento, o mestre Gerson, teólogo e filósofo por conta própria, nos fez ouvir uma música pouco conhecida de Raul Seixas, sobre a qual discorreu com proficiência e de forma elucidativa. Admirador de Belchior desde os 13 anos de idade, nos fez ouvir uma melodia desse notável pintor, cantor e compositor, que na realidade era um erudito e poeta, desde bem moço, quando ainda era aluno de seminário católico. Interpretou ambas as músicas com pertinência, percepção e argúcia, esclarecendo as metáforas e eventuais frases sibilinas, sobretudo no que as letras tinham de filosóficas e existenciais.

Após essa agradável e prazerosa noite, creio poder dizer, sem estar mistificando, que eu também participei de um extemporâneo Banquete de Platão.