Um caminho de haicai
Por Paulo Franchetti Em: 21/03/2024, às 10H10
[Paulo Franchetti]
Faz tempo que não me dedico ao haicai. Mas acompanho de modo pouco sistemático o que se produz sob essa designação.
Um dia desses, ocorreu-me a ideia de que talvez valesse a pena criar um grupo para aqueles que estão dispostos a percorrer um específico caminho de haicai. Um caminho entre outros, sem pretensão de ser o melhor, nem temor de ser o pior.
Mas por que isso valeria a pena? Que tipo de prática seria essa e qual a sua necessidade ou função nos dias de hoje?
Bom, eu pensei numa atividade que se diferenciasse, por um lado, do haicai tradicional, tal como praticado no Brasil e em boa parte do mundo; e, por outro, também daquilo que se poderia chamar de haicai sem lei nem caminho, no sentido de uma prática indiscriminada, na qual cada um faz o que quer, usando a palavra haicai para designar qualquer arranjo de palavras que o seu autor ache ou queira que achem que é haicai.
Enquanto tentava esclarecer para mim mesmo essa proposta, comecei a pensar nas diferenças entre ela e o que se reconhece como haicai tradicional no Brasil, uma vez que não reconheço nenhuma relevância no outro tipo, isto é, no tipo de haicai banalizado como terceto espirituoso ou sentimental.
De imediato, creio que haveria duas diferenças principais entre o haicai que me interessa e o tradicional. Uma que diz respeito à forma do verso, outra que diz respeito a um elemento do seu “conteúdo”.
1. Quanto à forma
Por mera convenção, considera-se no Brasil que o haicai exige a métrica 5-7-5 sílabas, contadas à maneira moderna.
Talvez nem todos saibam que até 1851 a contagem das sílabas do verso português era como a do verso espanhol e do verso italiano.
Um verso como “uma rã mergulha” era denominado hexassílabo, porque se contavam todas as sílabas do verso. Como aliás é até hoje em espanhol. A partir de certo momento, por conta do Tratado, de Antonio Feliciano de Castilho, a maneira nova de contar os versos, mais próxima da francesa, torna-se dominante entre nós: contam-se as sílabas só até a última tônica.
Ora, em japonês, se não estou em erro, nem sequer se pode falar em sílabas para definir o verso. O que se conta são os tempos (moras). Assim, uma sílaba simples seguida de nasalização vale dois tempos: por exemplo, a palavra “livro”, que se diz “hon”, vale por duas moras em japonês. E a palavra Bashô, como tem a última sílaba longa, vale por 3 tempos e não dois como quando a utilizamos em português.
Então, do meu ponto de vista, não faz sentido o preciosismo de querer fazer haicai em versos contados à maneira moderna em português. Eles têm quase sempre uma sílaba a mais por linha, em relação a um haicai japonês, pois só podemos falar em esquema 5-7-5 se ignoramos as átonas após as tônicas. E a estrofe, dentro da nossa tradição, não parece sustentar-se (por isso mesmo Guilherme de Almeida tratou de lhe dar mais consistência, por meio da inclusão do esquema de rimas).
Então, pergunto, qual o sentido de nos esforçarmos para manter uma métrica que nada tem a ver com o original que nos inspira? Uma métrica que, na nossa própria tradição, não nos diz nada, pois sequer construímos uma estrofe regular?
Há outras coisas muito mais importantes no trabalho de aclimatação do haicai do que esse preciosismo algo desfocado.
Portanto: o número de 17 sílabas me parece apenas um parâmetro, uma baliza, jamais um ideal ou uma obrigação.
Já a estrutura, em si mesma, creio que deva ser a do haicai tradicional, porque é da justaposição que resulta o efeito particular desse tipo de arte da palavra.
Assim, compostos em 3 versos, estes são os parâmetros que vale apena observar: o verso intermediário mais longo e ligado sintaticamente a um dos versos externos menores, para permitir o balanço característico da forma, e – claro – a justaposição.
2. O “conteúdo”
Aqui quero falar do “kigo”, a palavra de estação. No Japão, país de clima temperado e pequena extensão longitudinal, as estações são bem definidas. O haicai é, pela origem, como todos sabem, o terceto que traz uma indicação sobre a estação em que foi composto. Essa indicação, por força da tradição, se cristalizou em palavras e expressões convencionais. Neblina implica primavera, frio indica inverno, lua sem qualificação é kigo de outono, e muitas atividades humanas típicas de determinada estação indicam o momento do ano em que ocorrem.
O “kigo” é, assim, uma forma muito econômica e eficaz de despertar associações com um determinado momento e com a disposição de espírito que a ela se liga de alguma forma. É como um acorde, que define um tom e um clima, e abre um leque de possibilidades de harmonização.
No Brasil, país de enorme extensão em longitude e latitude, há poucos kigos unânimes. A maior parte deles associados ao calendário profano ou religioso (Carnaval, Natal, Dia de Finados, Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia do Trabalho...) ou à sazonalidade das frutas regionais.
Não creio, por isso, que faça sentido nos apegarmos aos kigos e compormos os haicais a partir deles. Podemos, claro, criar com o tempo um repertório de kigos, mas não de modo abstrato. Não como ponto de partida para a composição do haicai.
Com isso quero dizer que temos de nos centrar numa experiência, numa sensação ou num estado de ânimo originado de uma percepção objetiva (de preferência sensória). Com o tempo, pela repetição da associação da experiência sensória com uma época do ano ou uma disposição do espírito, poderemos ter algo parecido com o kigo, no sentido japonês. Nem isso, porém, deve ser o objetivo principal da prática, do meu ponto de vista.
Parece-me, em suma, um engano compor o haicai a partir do kigo tradicional. Isto é, o haicaísta sair em busca do haicai que caiba no kigo. É ruim para a prática, para a aprendizagem e para a fruição, isto é, para a descoberta que o leitor faz do que vem naqueles poucos versos.
O contrário é mais produtivo: compor o haicai por impulso, a partir de uma sensação ou percepção. E depois ver se o que disparou o haicai encontrou uma palavra própria ou não. E não se apegar ao haicai assim produzido, pois ele é um registro, uma consequência e não um objetivo. Como experiência e exercício espiritual, apegar-se a ele, querer produzir um haicai brilhante ou então tentar salvar a todo custo um haicai mal formulado, isto é, tentar construir com palavras o que a intuição não cristalizou de imediato, é perder o caminho no momento mesmo em que se tenta trilhá-lo.
Portanto, resumindo: o mais importante para o tipo de haicai que julgo interessante é ele se apresentar como registro objetivo de uma sensação. É em volta dessa sensação ou percepção objetiva que se deve articular o haicai, é para isso que deve apontar, independente de qualquer outra ressonância que ele tenha.
Sem sensação, sem haicai: eis o lema que acho mais profícuo. Haicai só feito de palavras e de abstrações não me parece digno de respeito (para parafrasear as palavras do mestre). O haicai que acho valer a pena é aquele centrado na verdade e na percepção objetiva.
Haveria muito a dizer ainda. Sobre a forma, sobre as tentações que lançam sombra no caminho. E também valeria a pena repisar um ponto: um tal haicai não deve pretender ser “literatura”, produto, mas vivência, prática, aprendizado, atitude. Um jeito de estar no mundo e na linguagem. A “visão própria”, a vaidade, o desejo de compor algo bonito ou brilhante, o desejo de explicar, de compor adivinhas e outras coisas fáceis, como jogos de linguagem, são os perigos e os entraves da prática. Mas isso seria discutido com vagar, na prática de cada dia, se eu fosse levar adiante este projeto.