Struwwelpeter, mas pode chamar de Thomas
Por Carlos Castelo Em: 28/10/2022, às 11H57
[Carlos Castelo]
Dia desses, assistindo à série alemã-austríaca Pagan Peak (pois é, eu curto um bom thriller), notei uma fala singular de uma das personagens. Era um pianista clássico, talentoso, que recentemente desistira da carreira. Indagado sobre o porquê da extremada decisão, o músico citou uma frase do escritor e dramaturgo Thomas Bernhard, que posto aqui de memória: “se não for para ser o melhor, o ideal é ir fazer outra coisa”. A citação deve ter sido pinçada de alguma entrevista, não a encontrei em nenhum livro do autor.
De todo modo, o pensamento resume um pouco do temperamento artístico de Bernhard.
Na introdução do livro Thomas Bernhard, o fazedor de teatro, o organizador e tradutor Samir Signeu dá uma boa pista sobre tais características comparando o escritor a Struwwelpeter.
Struwwelpeter é uma personagem recorrente em antigas fábulas, um garoto que não corta as unhas há mais de um ano e não deixa que penteiem os seus cabelos. Ou seja, um jovem que não se cuida e, portanto, possui uma aparência selvagem, suja.
O Struwwelpeter afronta as normas e condutas sociais ao agir de maneira impulsiva. Além disso, apresenta “maus” hábitos, atua de maneira inconveniente, revela péssimas atitudes, é desobediente, malvada e perversa.
Bernhard é por aí. Esteve sempre em conflito com a História e o Estado. Toda a sua produção foi o protesto de quem viveu os horrores da guerra e fez da sua obra um ato pela consciência. Para Samir Signeu, sua essência se manifesta através da polêmica direcionada contra a Áustria. “Essa ironia acaba incomodando tanto os de direita quanto os de esquerda. Isso o tornou impopular, pois, além de perturbar a ordem estabelecida, perturba, também, a possibilidade da unidade harmônica, tão buscada pelos austríacos”, conclui o organizador do livro.
É possível encontrar particularidades assim em todos os romances e peças de Bernhard. Desde o colérico O Náufrago, em que a radicalidade é tão grande que acaba esbarrando no humor, até o fragmentário e sintético O Imitador de Vozes. No recém-lançado Derrubar Árvores, Uma Irritação, mais uma vez notamos a ácida comicidade contra tudo e todos.
Praça dos Heróis, peça teatral traduzida para o português, também não foi diferente. Encenado em 1988 no Burgtheater de Viena, o texto trouxe uma reflexão crítica sobre o nacionalismo e o antissemitismo da Áustria moderna. Além de uma denúncia da negação de seu passado por parte do povo. O discurso agressivo acertou em cheio o ambiente conservador do país.
Ao lermos as ideias de Thomas Bernhard logo nos vem à mente um desejo: precisamos de um Struwwelpeter desses aqui no Brasil. E urgente.
(Publicado no Estadão)