Sobre o Pardal na Janela
Em: 06/01/2004, às 19H35
(*) Dílson Lages Monteiro
O escritor Marcel Proust escreveu que “todo leitor é um leitor de si mesmo”. O pensamento do notável romancista se faz ver em O Pardal na Janela, do poeta e crítico literário Alberto Da Costa e Sílva, recentemente editado pela Academia Brasileira de Letras (ABL).
Seduzem no livro a leveza do estilo (em alguns textos, o autor escreve à maneira de um laborioso cronista ), os diálogos intertextuais com a tradição a evidenciarem amor desmedido pela palavra multiforme e, sobremaneira, a focalização dos temas pelo enfoque da saudade. Desse modo, a linguagem é fácil, recheada de experiências vivenciais comoventes, como a recordação de encontro, em companhia de Antônio Carlos Villaça e do fotógrafo Aldir Vieira, com o notável poeta Manuel Bandeira (p. 106), a propósito de entrevista para um jornal de estudantes:
“Bandeira acolheu-nos de Pijama e chinelos, magro, moreno e encurvado, e de pijama e chinelos deixou-se fotografar. Levantara havia pouco da sesta e foi fazer-nos ele próprio um cafezinho, a achar imensa graça naqueles três meninotes. Levou, contudo, a entrevista a sério. (...) Bandeira copiou-nos alguns de seus poemas. Guardo, desse dia, o autógrafo de Desencanto e, sempre que o leio, volta-me a voz pausada, quase rouca, a dizer-nos com indisfarçável emoção: ‘Eu faço versos como quem morre...”
Fascina também a forma como exerce as críticas biográfica e temática. Habitualmente rotuladas de ultrapassadas e de incapazes de dar conta do fenômeno literário numa perspectiva crítica, essas formas de análise conseguem, nos textos de O Pardal na janela, diferentemente do que se possa acreditar acerca dessas abordagens, concretizar-se organicamente. Assim são construídas (distantes do artificialismo), porque ancoradas na polifonia – alguns diriam na retórica - e na exaltação de suas preferências individuais como crítico-leitor.
Alberto Da Costa e Silva reconhece que “é perigoso ligar os acontecimentos da vida de um autor às suas obras. Essas vinculações costumam muitas vezes levar a descaminhos”. Não obstante, passeia por dados pessoais dos autores analisados, examinando relações entre o ambiente sócio-cultural em que viveram e a obra por eles produzida, com coerência, à maneira de Richard Ellmann, para quem “a obra literária não é um mero objeto, mas uma convergência de energias, um deter-se momentâneo de forças que provêm não apenas da tradição literária, mas também do indivíduo e da sociedade”.
Nos diversos artigos nos quais comenta poetas e poemas, valoriza a poesia acentuadamente imagética. Desfilam em sua pena o entrecruzar de vozes consagradas pela tradição: Cesário Verde, Antero de Quental, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Murilo Mendes, Da Costa e Silva, com relevo especial a este último, a respeito do qual delineou ensaio antológico, O aprendizado de Orfeu, leitura relevantíssima a quem anseia mergulhar profundamente na poética do autor de Sangue.
Nesse ensaio, o crítico sonda a gênese da criação literária em Da Costa e Silva, abrangendo desde a infância até as leituras que se entrelaçam na obra deste que é um dos maiores vultos da Literatura Brasileira de Expressão Piauiense. Nele, resume-se um roteiro seguro para a percepção de como “surgiam as paisagens verbais de cuja construção foi mestre e que singularizam a sua obra”.
Em O Pardal na Janela, ressoa lição de Ivan Junqueira a validar Marcel Proust: “O texto é um tecido de textos anteriores, ecos dos quais evoca continuamente, tecido de referências históricas e práticas, jogos de palavras. Um texto não é, e não pode ser, único, mas um processo de compromisso”.
(*) Dílson Lages Monteiro é professor e poeta