Sobre o ódio

[Marcelo Eulálio]

O monstro da lenda fenícia, evocado pela Bíblia para dar a imagem de uma força corporal à qual nada resiste (Leviatã), não está cumprindo o seu papel. Os homens são potências movidas pelo desejo corrosivo de se autodestruírem. Isso bem se sabe desde os primórdios da existência da humanidade. A ordem social, construída para eliminar a violência natural, visando substituir a guerra de todos contra todos pela paz de todos, tem-se deteriorado.

O ódio existe e toma conta da alma humana. A concepção individualista e realista do homem recusa qualquer pressuposto moral que vele pela paz e pela civilidade. Então, por que “todos os homens desejam o gozo da felicidade e a ausência da miséria, e apenas e sempre isso” (Locke)?

Não é fácil explicar o inexplicável, isto é, explicar o que ninguém consegue entender. Talvez seja uma missão impossível. Por que é tão difícil o homem entender que ao nascer não pode ter direito no mundo a algo que outro não tenha? A boa vontade e a estima, que deveriam nortear as relações entre os homens, cedem lugar ao desprezo e ao ódio. Todos adoram e aprovam os discursos morais. Mas, se os discursos não forem levados à prática e incorporados às nossas ações, de nada nos servirão. Serão pura retórica. “O ódio acusa sem saber. O ódio julga sem ouvir. O ódio condena a seu bel-prazer. Nada respeita e acredita encontrar-se diante de algum complô universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe arbitrário e poderoso. Odeio, logo existo”. (Glucksmann). O ódio existe. Como na fábula O lobo e o cordeiro, de La Fontaine:

“ ‘...Além disso, sei que você falou mal de mim no ano passado.

 -Como poderia eu ter feito isso se ainda não era nascido?

– respondeu o cordeiro. – Eu ainda mamo em minha mãe. 

- Ah, não? Se não foi você, então foi seu irmão. 

- Mais uma vez, deve ser engano, pois não tenho irmão. 

- Então, foi algum parente seu... pois nenhum de vocês me poupa. Vocês todos, seus pastores e seus cães estão sempre contra mim. Alguém me alertou a respeito disso. Agora é preciso que eu me vingue.’

O lobo arrasta o cordeiro para o fundo da floresta e depois o devora sem se importar com seus argumentos de defesa”.

Contra a força não há argumentos. O homem com ódio já não se preocupa com a sorte do outro, não sente compaixão ou piedade ante a desgraça do outro. Seu coração é de pedra. Num mundo doente, o que os olhos não veem, o coração não sente. Melhor assim, não? A boa lição recomenda que, na terra dos homens, permanecer vivo (ou melhor seria escapar da morte?) é o primeiro objetivo de cada dia. Nesse mundo, “viver é negócio muito perigoso...” e não duvide, “tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (Guimarães Rosa).

O deleite inocente que, num passado não tão distante, sentíamos quando crianças pela troça e vexação suportada pelo outro, quando de todos os lados recebia empurrões, apertões e zombarias, transformou-se, hoje, em ódio colérico e lastimável experimentado por crianças que matam crianças. Em que nos transformamos? Em bestas feras? Com mais frequência assistimos a espetáculos de destruição da vida humana. Como bárbaros, experimentamos o fenômeno autofágico shakespeariano: “Tenho minha cólera como alimento, jantarei minha própria substância, desse modo ficarei saciado à medida que me alimentar " (Coriolano IV, II).

Nesse mundo doente, onde o ódio pauta a conduta humana, quem me dera, ao menos uma vez, acreditar que as pessoas não se odeiam, quem me dera, ao menos uma vez, acreditar que meus filhos estão seguros no mundo, “quem me dera, ao menos uma vez, acreditar por um instante em tudo que existe, e acreditar que o mundo é perfeito, e que todas as pessoas são felizes” (Renato Russo)