Ronald de Carvalho na mesa de trabalho

[Paulo Franchetti]

Estou animado com a ideia de fazer, para a coleção Clássicos Ateliê, uma antologia da poesia de Ronald de Carvalho. Ou mesmo editar a sua poesia completa. Não apenas pela oportunidade de colocar em circulação, numa publicação acessível, a obra do poeta, mas principalmente porque esse é o tipo de trabalho crítico que mais me deu alegria ao longo da vida.


De fato, na escala da satisfação, o primeiro lugar é ocupado pelas longas estudos introdutórios que tive a liberdade de escrever sobre clássicos da literatura de língua portuguesa: O Primo Basílio, A cidade e as Serras, Iracema, O Cortiço, Clepsydra, Dom Casmurro – pela Ateliê –, e um texto da mesma espécie, valendo-me da abertura e generosidade do então editor da Martins Fontes: a apresentação de Coração, Cabeça e Estômago. Junto com esses, talvez possa ser posta a apresentação de Haikai, Antologia e História. E a eles no mês que vem se juntará um texto ainda mais livre, que era para ser uma introdução a Esaú e Jacó, mas que terminou por se configurar como uma longa viagem pela fortuna crítica e pelos romances que se convencionou denominar como sendo os da segunda fase do escritor. Ou seja, são muitas alegrias. Não há que reclamar.


O que eles têm em comum, eu creio, é, além da liberdade total do formato, o destinatário: não o colega da sala ao lado, nem uma banca de doutorado ou livre-docência, e tampouco o público concreto de uma palestra universitária. Por conta disso, ali é possível dizer tudo. Isto é, não é preciso supor conhecimento prévio da parte do leitor, nem fornecer cerradas referências bibliográficas para cada afirmação. E penso que é a semelhança com a aula, nesses textos, que me atrai, porque a maior parte das ideias que me ocorreram e nas quais vi algum interesse nasceu ao longo de algum comentário miúdo, brotou do esforço de clarificar uma intuição de leitura que se apresentou como forte, mas obscura; ou, em via inversa, do desejo de liberar uma obra de um esquema interpretativo sedimentado, capaz de impor a ela uma leitura unívoca.


Já o último lugar (a gradação intermediária não tem muita importância para o argumento) é sem dúvida ocupado pelo artigo em revista especializada. Escrevi vários, como todo mundo. A maior parte, no meu caso, por necessidade de carreira; e por gosto, outra parte, menor. Mas mesmo dentre os que escrevi por gosto, vários me deixaram na boca um ressaibo amargo. É que o formato mesmo me parece desagradável. Não só pela necessidade da indicação bibliográfica até das alusões (mesmo quando se trata de um daqueles textos que todo mundo da área está cansado de ler), mas também pela padronização (o resumo em inglês, com as tais palavras-chave) e principalmente pela maneira de registrar as referências (não em notas de rodapé, fáceis de ver, e nas quais, quando fosse o caso, era bom conversar com o leitor, mas com a abstrusa e feia notação SOBRENOME-data-página). Isso, porém, não é o principal: o que me desagrada na verdade é a expectativa de registro a adotar num artigo de periódico especializado. Aquele modo que aspira à objetividade e à síntese que fariam avançar o conhecimento não pelo comentário extensivo e minucioso em que o saber literário usualmente se constrói, mas pela apresentação de resultados. A banalidade da maior parte dos artigos publicados em revistas especializadas na área da literatura sempre me impressionou. E creio que, por isso, acabei desenvolvendo uma espécie de ojeriza pelo formato, desconfiado de que talvez eu mesmo, naquele tipo de texto, não conseguisse fugir do tom e do nível que são nele mais frequentes. O que não quer dizer que não seja possível. Claro que é, e muitos colegas certamente conseguem escapar da regra. A limitação (assim como a ojeriza) ao que tudo indica é toda minha.


Enquanto escrevo isto penso uma vez mais que é muito bom estar aposentado. Não ter de publicar artigos, nem de participar de congressos (com aqueles arremedos de papers científicos, aquelas miniaturas de artigos de 5 ou 6 páginas, que lemos atropeladamente, de olho no quarto de hora que nos é destinado – e às vezes apenas para os colegas da mesa ou outra meia dúzia deles). Na verdade, parece-me uma bênção não estar submetido, por solidariedade ao programa ou aos colegas ou aos alunos bolsistas, a tudo isso. A esses procedimentos que são, na maior parte dos casos, apenas o cumprimento aos ditames do órgão de avaliação que sempre me pareceu o mais inepto – para não usar logo uma palavra pior – e infuncional. Um órgão que tem imposto à nossa área uma forma de funcionamento que, estou convicto, contribuiu bastante para o seu desprestígio e desinteresse atual: a Capes.


Na verdade, sinto-me até um pouco culpado - estranhamente culpado - por ter podido viver em outro tempo acadêmico. E numa estrutura universitária que, pelo que vejo, também era outra. E não posso me impedir de sentir alguma pena dos meus amigos e colegas da ativa, que se debatem hoje em dia com sucupiras e outro matagal de determinações e demandas absurdas e urgentes, que são feitas em nome da busca de uma avaliação objetiva que, até onde pude ver enquanto me ocupei disso, é mera ilusão – quando não é pura manipulação. Mas me ocorre também que talvez isso tudo seja apenas fruto da visão distorcida de quem está olhando de longe, talvez sem a luneta correta.


Seja como for, certo ou errado, me alivia a perspectiva de dedicar os próximos meses deste triste confinamento a uma tarefa de eleição livre, que poderá terminar em outro texto de formato livre. Ou não terminar em nada, se concluir que o esforço não valeu a pena. Portanto, ao trabalho, que os dias e as horas todas agora são iguais. Voltemos, então, à história dos subúrbios. No caso, à da obra em versos do quase esquecido, ou pouco lembrado, poeta Ronald de Carvalho.