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                          Hoje é quarta-feira, precisamente meia-noite e quinze minutos. Olho fixamente para a porta com três chaves que o antigo dono da casa que comprei acreditou ser segura. Ouço o barulho de motos e meu coração sempre forte e corajoso finge não disparar de medo.

Meu relato não é um conto policial e ficcional, é uma história que vivenciei ontem, às onze horas e trinta minutos, no feriado de Tiradentes, num bairro que prefiro não identificar, em Boa Vista, capital de Roraima.  Vão dizer que tudo que não presta ocorre em RR, mas na verdade, os assaltos em saídas de banco, de casa, de escola são ocorrências do Brasil antes e após Dilma ser a presidenta. Segurança é uma promessa de todos os políticos e partidos, em Roraima e em todo país.  Bem, vamos ao relato.

Ontem eu achei que podia ter o direito a um lazer, já que trabalho tanto. Chamei um táxi para me levar a um clube de natação. Deveria ter feito como sempre, esperar o táxi chegar. Porém, não foi assim. Atravessei a rua e em questão de segundos me tornei uma indigente. Dois marginais pararam uma moto e um desceu em minha direção com uma faca enorme e pediu as minhas bolsas. Eu pedi meus documentos. Mas ele me disse para desaparecer do local se não quisesse morrer. Não reagi. Saí em pânico, sentindo-me impotente, reles, chula ou qualquer adjetivo que me fizesse sentir menor.

Fui à casa de uma vizinha professora que me socorreu com copo de água e me conduziu a um DP de plantão. Antes, liguei para o 190 que me fez interrogatório que deve ser uma rotina e todos os discursos convergem para arquivamento, dependendo de quem é assaltado. Engraçado que o policial me fez um interrogatório antes de ver se registrava o boletim de ocorrência. Creio que é de praxe, mas o que eu menos queria era ser interrogada. Imagine, eu sem documentos, sem cartão, com tudo roubado. Fiz o BO e pedi ao policial que me desse o número do Banco do Brasil para bloquear meu cartão. Ele poderia pensar: “É uma professora que paga impostos” e poderia me ceder o telefone, mas não. Tudo é questão de bom senso, já que a conta é paga com nosso dinheiro.

Saí da delegacia feito trapo, feito reles mendiga de praça, sem bolsa, sem identidade, e ninguém vai acreditar que sou uma professora universitária, já que eu tenho apenas as palavras e elas não me asseguram quem sou eu. Devo ser mais uma moradora de rua, usuária de drogas pedindo dinheiro para cheirar cola. Foi assim que me senti quando cheguei a uma escola para pedir informação sobre a casa de um professor amigo que também ficava ali perto e meu estado emocional abalado não me fazia lembrar da rua. A informante da escola queria correr, olhou-me com ar de quem estava mentindo.

Voltando do BO, graças a Deus que na mesma rua moravam dois professores amigos de trabalho e um deles me fez almoço; o marido da professora deu-me cerveja para relaxar, uma vez que segundo ele eu não conseguia segurar o copo de água e para ele eu disse que a moto era vermelha e para o policial eu afirmei ser amarela. Na verdade, a moto era amarela, ou era a camisa do delinquente? Bem, pouco importa, fui roubada e ameaçada de morte em plena luz do dia. Não vou dizer que os dois eram de cor morena para não levantar suspeitas em todos os de cor negra. Poderiam ser de cor branca.

Horas depois do ocorrido, já sem nada para ser assaltada, exceto meu anel de formatura em Letras, fui à casa de um professor e a esposa dele me abraçou quando eu desabei em lágrimas, pois eu senti que existia. Sim, filosoficamente a ideia de existir é uma das melhores sensações, pelo menos para algumas pessoas que me conhecem, exceto isso, eu era uma indigente em estado longínquo do meu de origem.

Sem celular, sem whatssap, sem facebook, sem RG e CPF, nada sou... e nem vou relatar a sensação que tive ao imaginar um delinquente invadindo minha rede se passando por mim, divulgando fotos de celular. Na verdade, eu não posso me fechar, mas a vontade que tenho é a de não sair às ruas, porque o sentimento de liberdade e segurança foi roubado e trocado pela certeza de uma violência estranha e cruel. E eu pergunto: Por que eu tenho que declarar imposto de renda e pagar tanto num país chamado Brasil? Para onde vai nosso dinheiro se o mínimo de segurança que precisamos não temos?

Sem segurança e violada a minha tranquilidade, volto a olhar seguidamente a porta e imagino que os ladrões poderiam voltar. Mas eu preciso antes de tudo ter coragem e acreditar que Deus existe. Mas aí vem o ateísmo de José Saramago em minha cabeça e eu prefiro nem questionar... Prefiro pensar que a minha vida permanece e é apenas isso que vale a pena. Estar viva. Meu Deus, obrigada pela vida, por ter amigos, por me fazer acreditar que os ladrões vão jogar minha bolsa por aí em algum lugar de Boa Vista e eu poderei recuperar a minha existência de papel, as cópias de chave. Poderei provar ao Banco do Brasil que eu sou a pessoa tal para retirar dinheiro, e ter um celular vagabundo para dar um alô a minha família e ainda poderei provar no hospital que eu sou fulana de tal e preciso de uma consulta médica, já que os ladrões levaram meu cartão de saúde. Na verdade eu sou somente mais uma indigente com Boletim de Ocorrência 1819/15 que a polícia do Segundo Distrito Policial de Roraima irá arquivar, pois ninguém interessaria por um episódio banal, cotidiano e trivial. Observe o número do boletim para ver que não faço julgamento em vão.

 E nem vou entrar em pânico imaginando o que ocorreria se eu morresse como seria o fim, ou se teria direito a um funeral, pois uma indigente iria ser conduzida aos destroços de algum cemitério da periferia de Roraima. Afinal, sem documentos, quem sou eu? Poeta? Professora? Uma louca? Sim, pareço-me aos homens que perderam a lucidez e a identidade quando ficaram cegos, sem reconhecimento, nas obras O ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago.

Bem, concluo meu conto real e publicarei até sexta-feira ou algum dia, se os ladrões não arrombarem a minha porta e levarem meu único pertence do momento, o notebook, onde escrevo minhas histórias e poemas, preparo minhas aulas que nem poderei salvar em pen drives, pois levaram também. Agora, na linha do epílogo desse relato, veio-me à mente um sonho. Creio que a única coisa que resta a uma miserável é a capacidade de sonhar como faz a personagem de Os miseráveis, de Victor Hugo. Sonho com a verdade da notícia do número da besta, que as próximas identidades, segundo alguns protestantes, seriam um chip. Sim, um chip em minha digital era tudo que eu precisaria para provar que sou gente que come o pão que o diabo amassa todos os dias para simplesmente ser assaltada defronte ao seu lugar de moradia. Enquanto isso, prefiro ficar com a letra da música do Capital Inicial: “Que país é esse?”.

Rosidelma Fraga.