Elmar Carvalho


Tenho gratas recordações da encantadora e bucólica Amarante. Quase diria que algumas remontam à minha infância, através dos belos versos de Da Costa e Silva, que sempre me comoveram, quando falava da igreja branca, do bando de casas estampadas na paisagem verde, dos saudosos mugidos dos bois de sua terra, dos rangidos plangentes dos engenhos, ou ainda do Velho Monge, alongando suas barbas brancas, feitas de água e espuma. Da Costa é um poeta que ainda hoje me comove e encanta. Tanto que, quando presidi a União Brasileira de Escritores do Piauí, porfiei em trazer seus restos mortais para a sua Amarante. Na campanha, como um dos mais fortes argumentos, usei os seus versos imortais, em que ele pedia para ser sepultado em plagas amarantinas, quando disse que ali tivera o berço e que ali esperava ter “sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho”. Lamentavelmente a campanha não obteve êxito, mas ainda acho que eu estava no caminho certo. Em sua terra, seu túmulo seria um monumento, e seria visitado e reverenciado pelos seus conterrâneos amarantinos e piauienses.

A primeira vez que visitei Amarante foi em meados da década de oitenta, quando estive nessa cidade na condição de fiscal da extinta SUNAB. Embeveci-me com a sua beleza. Li os versos do poeta, estampados em placa de bronze. Era a cidade azul do poeta, das serras azuis, do céu mais azul, das águas azuis de seus três rios. Afinal, Amarante é quase uma ilha paradisíaca, rodeada pelos rios Mulato, Canindé e Parnaíba, o hoje decrépito Velho Monge, tão grandes são as atribulações que lhe causam com as queimadas e desmatamentos, já denunciados pelo excelso poeta, muitos anos atrás. Vi suas casas antigas, que nos fazem viajar no tempo, que nos fazem retornar a uma época mais morosa, mais amorosa e mais manhosa. Nessa ocasião, hospedei-me em uma pousada, antigo solar, que parecia habitada por antigos fantasmas de afogados e poetas. De madrugada, quando acordei, fazia frio e caía uma chuva fina. Senti uma forte vontade de urinar. Tentei resistir, pois o banheiro ficava distante, tendo que percorrer um comprido corredor até chegar a esse anexo. Resisti também porque estava com certo medo, por causa da lembrança de almas penadas, que talvez vagassem pelas alcovas e alpendres do vetusto casarão. Contudo, a necessidade fisiológica foi mais forte, e tive que ir ao mictório. Quando lá cheguei ouvi uns gemidos penosos, doridos, como se partissem de um moribundo. Não urinei direito, e voltei quase correndo, imaginando que aqueles gemidos, que aqueles ais doloridos bem poderiam ser de almas penadas, os fantasmas dos poetas e dos afogados. No dia seguinte, qual não foi a minha surpresa, quando soube que no quarto perto do banheiro dormira um casal em plena lua de mel. Em lugar de dormira, retifico para passara a noite. Então, num lampejo, compreendi que as minhas almas penadas, eram duas almas “penando” na volúpia ardente dos esponsais.

Estive várias outras vezes em Amarante, a serviço, mas principalmente participando de eventos culturais. Num deles, conheci o meu amigo Cunha e Silva Filho, amantíssimo amarantino, emérito professor universitário no Rio de Janeiro, poliglota, cronista e crítico literário da melhor cepa. Travamos uma animada conversação, voltada para assuntos culturais, sobretudo literários. Falamos de poetas e de poesia. Prometi enviar-lhe algumas publicações minhas. Cumpri a promessa, e de lá para cá temos reforçado uma boa e fraterna amizade. O Cunha, para honra e gáudio meu, passou a admirar os meus poemas, e se tornou o meu mais efetivo crítico literário, tendo escrito vários artigos e pequenos ensaios sobre a minha poesia.

Em minha gestão na UBE-PI, no final da década de 80, promovi um encontro cultural em Amarante, de que participaram vários escritores residentes em Teresina. Depois, compus o poema Amarante, que caiu no gosto dos amarantinos. Devo confessar que foi uma temeridade cometer esse poema, depois dos belos versos dos amarantinos Da Costa e Silva, Clóvis Moura, Carvalho Neto, Virgílio Queiroz, em que essa bela terra azul é louvada e festejada. Mas os poetas somos um pouco loucos, e não seria eu uma exceção. Esse meu poema teve a simpatia do professor Paulo Nunes, articulista e ensaísta da melhor qualidade, um estilista primoroso, que o citou na íntegra, num excelente trabalho que escreveu sobre a minha poética, como uma homenagem a sua mulher, dona Clara, por ser ela amarantina.

Certa feita, quando juntamente com outros poetas e escritores, caminhava na beira do cais, contemplando a serrania azul, a bucólica São Francisco e as barbas aquosas e alongadas do Velho Monge, observei cair uma chuva de pétalas. Era um velho fauno, que do alto do passeio do cais, tentava conquistar uma ninfa que nos acompanhava. Não houve a conquista, mas valeu a pena a revoada de pétalas enfeitando a manhã.

O professor Marcelino Leal Barroso de Carvalho, que foi meu mestre no curso de Direito, na Universidade Federal do Piauí, e que hoje é o diretor geral do conceituado Instituto Camillo Filho, depois de ter feito brilhante carreira no magistério superior piauiense, houve por bem lançar o meu livro Lira dos Cinqüentanos em Amarante, da qual é ilustre filho. O evento aconteceu dentro da parte cultural da festa religiosa da Irmandade do Divino Espírito Santo, cujo ritual sacro ele ressuscitou, uma vez que essa tradicional festa religiosa estava adormecida há várias décadas. O lançamento de meu livro aconteceu num casarão secular, na avenida Desembargador Amaral, em noite memorável e agradabilíssima, em que notáveis personalidades amarantinas compareceram, entre os quais os amigos Álvaro e Raimundo Luís Cutrim, Geraldo Majella Nunes de Carvalho, vindos especialmente de Teresina para esse fim. Foi exibido, na oportunidade, o documentário Elmar Carvalho – O Poeta e seus Labirintos, em que ocupa lugar de merecido destaque a velha e graciosa urbe do médio Parnaíba. Foram distribuídos aos presentes baners do poema de louvação (a) Amarante. Um deles, devidamente emoldurado, encontra-se exposto no museu da Casa Odilon Nunes.

Numa tarde agradável de um tempo que não sei fixar no calendário comum, mas apenas no do espírito, da emoção e da saudade, encontrava-me com o poeta Virgílio Queiroz, no cais do Velho Monge, bebericando umas pingas com água tônica, quando inesperadamente, como um sortilégio, veio uma ventania que sacudiu as faveiras, debaixo das quais estávamos. As favas secas começaram a emitir um som de chocalhos e de maracás. Foi como se aquele som evocasse uma época muito antiga e ancestral, em que os índios perlustravam aquelas terras, aquelas serras azuis encantadas e perlongavam o curso sinuoso do Parnaíba.

Ainda hoje escuto a música encantatória dos maracás daquelas faveiras e a dança requebrada do arvoredo. E ainda perpassa em minha pele o afago daquele vento, que ninguém sabe de onde veio, que ninguém sabe para onde foi...