Cunha e Silva Filho
 
 
     Você alguma vez já  pensou, leitor, por que  escrevemos? Antes de tudo, devo empregar o termo  escrita no sentido mais amplo do domínio literário. E aí se  incluem crônicas,  diários,  memórias,  notas  de viagens, apontamentos,   ensaio, crítica literária (já se está falando  por aí que esta está  desaparecendo, com o que não concordo. 
   Ainda   incluirei os gêneros mais  tradicionais embora tenham  passado modernamente  por  grandes  mudanças mas sem perder a sua  estrutura intrínseca,  aquele  dado determinante que o torna um  gênero e não outro: o conto,  a novela,  o romance e, no campo  teatral, todo o texto escrito com destino certo de ser  teatralizado: o drama,  a tragédia e a comédia. Até aqui me restringi à escrita literária  em prosa. Por fim,  coloco em  plano  sobranceiro, a poesia,  tendo já sido considerada  a mais pura  das artes.
   O poeta  Mallarmé  a define como  a “suprema forma de beleza.”  Não é este o lugar de convocarmos as mais belas  definições dapoíesis. O que nos prende a  atenção  é o tema dos motivos  da escrita literária, quer dizer,  o que impele alguém dotado do pendor para  escrever em linguagem literária sobre algum  assunto.
   Este é o busílis da questão. Não vou discutir  tampouco  as razões pelas  quais  alguns   escritores  são levados  aos braços  da ficção ou das musas, ou de ambas. Sabe-se que escritores  há que são  polígrafos e outros que só escolhem  um  gênero de escrita e permanece  nele  por toda a vida. Uma vez,  numa conferência na Academia Brasileira de Letras,  o  ensaísta, teórico e crítico  Eduardo Portella, confessava,  em tom  francamente  melancólico,  como se estivesse a sós  com um amigo, que nunca escrevera um só poema  e a sua fisionomia um tanto  triste no momento  acompanhava  a declaração. Passara a vida  analisando  poemas  de tantos autores e jamais  teve o talento  para  escrever versos é o que se poderia  dizer  implicitamente  de suas   palavras.
  O certo é que isso é um dado que  serviria  para  ampla discussão  entre  especialistas ou  não, ou seja,  o leitor  inteligente e  amante  da literatura, como  existem tantos por aí de outras  profissões que nada têm a ver com  a escrita literária. O mesmo poderia afirmar de  profissionais  de outras atividades  que não viveram  apenas   do que lhe  dava  o real sustento  da família mas que  mostraram   ter  a vocação literária,  o que os fizeram  bons e até ótimos  escritores. São muitos os exemplos na literatura brasileira e estrangeira. Pouquíssimos são aqueles que só vivem  de escrever. No Piauí, temos um exemplo, o de Assis Brasil, até hoje  viveu de literatura. Tem uma produção  imensa  que extrapola a casa dos cem livros. 
    Alguém poderia arguir: “Mas, escrevendo  tantas obras, será que  são tantas de boa qualidade?” Não importa que a resposta seja  negativa ou positiva. O fato é que quem escreve com tanta porfia  merece elogios, quando menos  porque  mostrou  ter  uma  grande capacidade  de  produzir, o que é uma vantagem sobre os que  escrevem muito  pouco. Por outro lado, há que acrescentar: a quantidade de livros de um  autor  se explica  também  pelas condições de vida  dele,  por exemplo, maior  tempo  para se dedicar  a escrever, uma vida  menos agitada,   uma certa solidão  necessária, uma maior liberdade  individual  para  tocar seus  projetos  de escrita, uma saúde  boa, continuidade de projetos, responsabilidade intelectual etc
   Entretanto, um problema  de natureza epistemológica ainda  mexe com  os meus pensamentos sobre  o ato da escrita e sobre  as razões de sermos impelidos  para este lado artístico. Uma explicação me vem à tona: a do ambiente  familiar. Por exemplo, um pai  escritor tende a influenciar um filho que tenha inelutavelmente o potencial  para  se dedicar  à atividade literária, assim como  vale para  outras  vocações  que não a literatura. O que, porém dizer de escritores  cujos  pais  nada têm a ver com  a literatura?
     Em muitos casos,  há exemplos de ascendência familiar   que se dedicavam, às vezes, às escondidas,  à literatura,  a escrever versos, ficção etc., ainda que de forma  amadorística.  O certo  é que o ambiente  familiar  é um fator  determinante para filhos sigam  o que  fazem os  pais. Outro fato que  oferece um bom kick off às vocações   é  ter tido  o futuro  escritor  palavras de estímulo de um  líder intelectual, de uma pessoa  relacionada  à vida  literária e cultural. Os desestímulos por vezes  prejudicam  a condição  de um futuro  escrito, mas não são decisivos  às determinações  de um vontade férrea que  resiste aos  obstáculos. Às vezes, até fortalecem os determinados, segundo tenho  tido  notícias sobre o assunto.
     Após considerar  tudo isso  de forma sumária,   me vejo  forçado a  dar testemunho  do meu  exemplo particular. Me pai foi professor,  jornalista,  escritor. Vivia  entre os livros, jornais, revistas.  Eu via tudo aquilo.  Tudo  observava.  Aos poucos,  por  necessidade    imperiosa  de temperamento artístico,   me voltei também  para os livros, e sobretudo  para a escrita.  Todavia,   não segui ao pé da letra as preferências  do gênero  de meu pai, que eram o jornalismo e os estudos históricos, sociológicos,  filosóficos. Um dia,  estando eu  deitado ainda na rede escutei sem que eles soubessem uma conversa entre meu pai e minha mãe a respeito  do que  ele pensava de mim. O que ouvi   seria mais ou menos  isso: “Meu filho Francisco  não é o que  poderia chamar de jornalista. Ele tem propensão para ser escritor.” Mamãe pareceu  concordar com ele. Examinando bem o que meu pai  falara de mim entendi melhor  que, ao me definir como escritor,  ele queria  dizer  alguém  que escreve sobre literatura ou mesmo  raramente  alguém que  imagina  escrever  ficção.  
    A concepção de meu pai  fazia  uma grande diferença entre  o jornalista,  um comunicador de fatos  ocorridos, de notícias e de opiniões sobre a realidade  de forma  objetiva. Nunca, desde aquela noite,  deitado na rede,  deixei de  refletir sobre aquele pequeno diálogo entre meus pais.
    Há algo que  gostaria de adicionar a essas  ponderações.
Muitos anos depois daquela fase de adolescente em Teresina,  já com  um bom   traquejo  de ter escrito  muita coisa,  me vejo  ainda  na obrigação  intelectual  de afirmar  ser a razão  de minha   escrita algo  bem superior  às contingências materiais do meu quotidiano.
   Em outros termos,  julgo que as razões da  minha escrita literária penetram  em outro  universo   existencial,  passam ao campo  da transcendência, da vontade  da carência, da falta, do desejo de  me comunicar com  outros, da necessidade  de me afirmar  ante  os problemas  da vida, dos homens, da sociedade,  dos governos, das ideologias, das religiões,  de permeio com  as reflexões sobre o  fenômeno  literário,  sobre  a questão dos valores  artísticos,  literários,  morais, econômicos, culturais  em larga escala não adstritos  apenas ao meu país mas ao mundo, às injustiças,  ao desmoronamento  moral  da  humanidade, às ameaças  de um grande conflito  global, às seriíssimas  questões   climáticas, preocupação de grandes   pensadores e cientistas atuais.

   Essas duas dimensões da existência trabalham em meu espírito ora separadamente (temas, tensões, apelos,  indignação)), ora conjuntamente (temas e linguagem literária) quando  postas  na forma  impressa.  Quanto à questão de gênero,  a minha preferência  recaiu  ao longo de todo esse tempo para o campo da crítica literária, secundada  pelo gosto de traduzir poesia, de escrever crônicas, artigos e de aperfeiçoamento individual das línguas que cultivo, que não são muitas.