Rápidas reflexões sobre haikai
Em: 01/10/2016, às 04H13
ROGEL SAMUEL
Se mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
(Luiz Bacellar: Satori)
Um dia, durante um Kalachakra, alguém perguntou ao Dalai Lama:
- Sua Santidade, o que é a Iluminação?
Ele explodiu uma grande gargalhada e disse:
- Mas eu não sei...
Assim é a noção de Haikai que aqui vamos investigar teoricamente outra vez, em fragmentos de reflexão. Ela já nos foi pedida certa vez como prefácio ao livro “Satori”, de Luiz Bacellar, já falecido, publicado em Manaus pela Editora Valer (2000), um livro de haikais. É em homenagem à memória do grande poeta amigo que vamos retomar aqui.
A arte faz saltar a verdade, já disse Heidegger.
A lua se vê no chão, a gloriosa lua. A luz pura da lua se vê naquele espelho, “um espelho de boas qualidades”, que jaz no chão, a sabedoria do espelho puro da água.
Do céu à terra, a glória da lua se vê na lama.
Mas a lama não polui a lua, nem a lua purifica a água.
Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente onde se encontra o espírito do Zen, quando todas as coisas se refletem entre si na sabedoria que é como espelho.
Tão simples e tão claras, as coisas aparecem na água da lama como puras de um céu sem nuvens.
Se mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
A lua não está na vaidade da água, nem a água está coberta do glorioso céu. A água podia estar correndo lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”.
Porque se pode dizer que o Haicai é a súbita visão de espelho da mente do poeta quando nasce o olho da sabedoria.
Escreveu Santideva:
“ Yogacarin: Se a própria mente é uma ilusão, então o que é isto que é percebido?
“Madhyamika: A mente não percebe a mente. Da mesma maneira que uma espada não pode cortar-se a si mesma, assim é a mente.”
Se a lua se acredita no céu, está na lama.
Ou, como escreveu Wittgenstein: “o olho, que tudo vê, não se vê”. Pois “o que pode ser mostrado não pode ser dito”.
Aquela verdade salta aos olhos:
“El arte hace surgir la verdad. El arte salta hacia adelante y hace surgir la verdad de lo ente en la obra como cuidado fundador. La palabra origen [Ur-sprung] significa hacer surgir algo por medio de un salto, llevar al ser a partir de la procedencia de la esencia por medio de un salto fundador” (Heidegger. El origen de la obra de arte. Trad. de Helena Cortés y Arturo Leyte. Caminos de bosque, Madrid, Alianza, 1996).
Por isso, a iluminação tem sido associada ao ver, ao Olho.
No Dhammacakkappauattanasutta se declara:
"Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento pode ser realizada, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento foi realizada".
Assim a iluminação de Buddha se fez em três etapas.
Na primeira parte da noite ele tomou conhecimento da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda Nobres Verdades.
Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens interdependentes explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo.
No Dhammapada, v. 153-154, se declara solenemente:
“Na última vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
E iluminação pressupõe sempre luz.
Haikai seria a experiência feliz da surpresa do real da realidade que salta aos olhos, a percepção do instante significante da súbita e fragmentária cessação do processo de vir-a-ser, uma espécie de pseudo-iluminação em que o poeta vê naquele momento sem pensamento.
A paz, na tranqüilidade do céu sem nuvens, da água sossegada, mesmo em movimento. Quando o pensamento cessa, o mundo desperta, lúcido.
Se mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
A lama não enlameia a lua, nem a lua se banha ali. Mas há inteligência viva e suprema da Atenção (Sattipatana Suttra), que é a Quarta Nobre Verdade.
A visão repousa, assim, na existência da água na poça de lama em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou na poça de lama do pátio onde a lua se vê radiante.
Se saber é sabor, a questão fica sem resposta.
Porque poucos a experimentaram.
É falar do que não se sabe.
No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível a transmissão da lucidez através da poesia.
Sendo uma experiência, o haikai faz a apreensão da poça da água na lama do pátio num céu sem nuvens, onde a lua reina, vaidosa entre as estrelas, na visão do silêncio que tudo penetra.
Coisa súbita, abrupta.
Sem objetivo, nem proveito.
Quando o Buddha vinha de sua Iluminação suprema Ele encontrou um homem que, assustado ao vê-Lo com tanta luz, perguntou quem era e quem tinha sido seu mestre.
O Buddha, que não teve mestres, respondeu:
“Eu sou Aquele que compreendeu o que devia ser compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Por isso Eu sou o Buddha, o Desperto”.
O haikai é despertar, aponta para a dignidade da realidade e toma cada atividade como um fim em si mesmo.
Na visão impura, há sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno.
Na visão impura, a lua está na imundície da lama do chão.
Na visão pura, não: não há puro ou impuro, nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor, há sofrimento, mas não há sofredor.
Na visão pura não há certo ou errado.
Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de que se libertar.
Não há dualidade.
Como se diz no Sutra do Coração:
“ Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são vazios. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso, Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, não existem dharmas”.
Satori é libertação?
E libertação de quê?
Talvez do próprio questionamento sobre o que satori seja.
Libertação do questionador, do sujeito que põe a questão, da dúvida e da certeza, o espanto da aparição misteriosa que salta ali como o surgir do límpido desconhecido.
Um dia alguém perguntou a Sua Santidade Sakya Trizin:
- Então, o que são as aparências?
- Um longo sonho, respondeu ele.
Quando o pensamento cessa a lua aparece.
Só a vemos quando a mente fica no estado de desapego, de silêncio, que é a realização profunda do Dzogchen.
Diz Santidade o Dalai Lama:
“A prática cotidiana do dzogchen consiste em cultivar simplesmente uma plena aceitação sem preocupação e uma abertura ante todas as circunstâncias. Devemos compreender que a abertura é o campo onde jogam todas as emoções e relacionarmo-nos com o próximo sem artificialidade, manipulação nem estratégias. Devemos experimentar tudo completamente”.
Dzogchen é a grande perfeição.
“A Grande Perfeição: o nono e o último veículo. Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenômenos e da presença natural das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição para sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos nesta perfeição primordial”, salientou Pema Wangyal Rinpochê.
O Satori vê dentro da verdadeira natureza, ou seja, da correta compreensão.
É considerado o primeiro passo para a budeidade.
É uma súbita iluminação, uma súbita intuição da verdadeira natureza, inexplicável e indescritível, e ininteligível.
Em “Viver através do Zen”, de Suzuki, se lê:
“O que significa "viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente”.
“Visto de outro modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?”
Fernando Pessoa, no seu famoso «O guardador de rebanhos», abre sua técnica de meditação, na melhor tradição dos mestres Zen.
Ele diz: sou um pastor de pensamentos.
"Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
«Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."
É quando seu corpo está deitado na realidade que ele reúne os pensamentos como um pastor suas ovelhas, para que não se percam nem se extraviem, para que não divaguem, nem delirem.
Reúne suas ovelhas dentro de si.
É o que o Zen diz: "Viver dentro de casa". Dentro de casa é dentro de si.
Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) cantava assim:
"As formigas vagarosas lutam para carregar as asas de uma libélula morta; As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo de salgueiro; as fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora; os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»
Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado", diz Suzuki.
Que perdemos?
Perdemos a beleza, a claridade.
Não vemos a beleza dos pássaros no céu, das flores na terra, da luz sobre a montanha, das sombras estreladas da noite, da lua na poça da água.
Porque a vida em si é bela, é algo misterioso.
Escapa à compreensão intelectual.
Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou o desejo de ser iluminado no Zen.
O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto".
No dia seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo.
Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim".
O monge chegou mais perto dele.
Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".
Como para o lutador de espadas. A alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente.
Uma realidade só se dá única.
Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar consciente de que estou pensando.
Como se diz no Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias".
Ou como o monge que chegou ao seu mestre e perguntou:
- Como posso atingir a Libertação?
- Quem te prende? - respondeu o mestre.
ROGEL SAMUEL
Se mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
(Luiz Bacellar: Satori)
Um dia, durante um Kalachakra, alguém perguntou ao Dalai Lama:
- Sua Santidade, o que é a Iluminação?
Ele explodiu uma grande gargalhada e disse:
- Mas eu não sei...
Assim é a noção de Haikai que aqui vamos investigar teoricamente outra vez, em fragmentos de reflexão. Ela já nos foi pedida certa vez como prefácio ao livro “Satori”, de Luiz Bacellar, já falecido, publicado em Manaus pela Editora Valer (2000), um livro de haikais. É em homenagem à memória do grande poeta amigo que vamos retomar aqui.
A arte faz saltar a verdade, já disse Heidegger.
A lua se vê no chão, a gloriosa lua. A luz pura da lua se vê naquele espelho, “um espelho de boas qualidades”, que jaz no chão, a sabedoria do espelho puro da água.
Do céu à terra, a glória da lua se vê na lama.
Mas a lama não polui a lua, nem a lua purifica a água.
Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente onde se encontra o espírito do Zen, quando todas as coisas se refletem entre si na sabedoria que é como espelho.
Tão simples e tão claras, as coisas aparecem na água da lama como puras de um céu sem nuvens.
Se mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
A lua não está na vaidade da água, nem a água está coberta do glorioso céu. A água podia estar correndo lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”.
Porque se pode dizer que o Haicai é a súbita visão de espelho da mente do poeta quando nasce o olho da sabedoria.
Escreveu Santideva:
“ Yogacarin: Se a própria mente é uma ilusão, então o que é isto que é percebido?
“Madhyamika: A mente não percebe a mente. Da mesma maneira que uma espada não pode cortar-se a si mesma, assim é a mente.”
Se a lua se acredita no céu, está na lama.
Ou, como escreveu Wittgenstein: “o olho, que tudo vê, não se vê”. Pois “o que pode ser mostrado não pode ser dito”.
Aquela verdade salta aos olhos:
“El arte hace surgir la verdad. El arte salta hacia adelante y hace surgir la verdad de lo ente en la obra como cuidado fundador. La palabra origen [Ur-sprung] significa hacer surgir algo por medio de un salto, llevar al ser a partir de la procedencia de la esencia por medio de un salto fundador” (Heidegger. El origen de la obra de arte. Trad. de Helena Cortés y Arturo Leyte. Caminos de bosque, Madrid, Alianza, 1996).
Por isso, a iluminação tem sido associada ao ver, ao Olho.
No Dhammacakkappauattanasutta se declara:
"Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento pode ser realizada, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento foi realizada".
Assim a iluminação de Buddha se fez em três etapas.
Na primeira parte da noite ele tomou conhecimento da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda Nobres Verdades.
Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens interdependentes explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo.
No Dhammapada, v. 153-154, se declara solenemente:
“Na última vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
E iluminação pressupõe sempre luz.
Haikai seria a experiência feliz da surpresa do real da realidade que salta aos olhos, a percepção do instante significante da súbita e fragmentária cessação do processo de vir-a-ser, uma espécie de pseudo-iluminação em que o poeta vê naquele momento sem pensamento.
A paz, na tranqüilidade do céu sem nuvens, da água sossegada, mesmo em movimento. Quando o pensamento cessa, o mundo desperta, lúcido.
Se mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
A lama não enlameia a lua, nem a lua se banha ali. Mas há inteligência viva e suprema da Atenção (Sattipatana Suttra), que é a Quarta Nobre Verdade.
A visão repousa, assim, na existência da água na poça de lama em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou na poça de lama do pátio onde a lua se vê radiante.
Se saber é sabor, a questão fica sem resposta.
Porque poucos a experimentaram.
É falar do que não se sabe.
No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível a transmissão da lucidez através da poesia.
Sendo uma experiência, o haikai faz a apreensão da poça da água na lama do pátio num céu sem nuvens, onde a lua reina, vaidosa entre as estrelas, na visão do silêncio que tudo penetra.
Coisa súbita, abrupta.
Sem objetivo, nem proveito.
Quando o Buddha vinha de sua Iluminação suprema Ele encontrou um homem que, assustado ao vê-Lo com tanta luz, perguntou quem era e quem tinha sido seu mestre.
O Buddha, que não teve mestres, respondeu:
“Eu sou Aquele que compreendeu o que devia ser compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Por isso Eu sou o Buddha, o Desperto”.
O haikai é despertar, aponta para a dignidade da realidade e toma cada atividade como um fim em si mesmo.
Na visão impura, há sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno.
Na visão impura, a lua está na imundície da lama do chão.
Na visão pura, não: não há puro ou impuro, nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor, há sofrimento, mas não há sofredor.
Na visão pura não há certo ou errado.
Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de que se libertar.
Não há dualidade.
Como se diz no Sutra do Coração:
“ Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são vazios. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso, Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, não existem dharmas”.
Satori é libertação?
E libertação de quê?
Talvez do próprio questionamento sobre o que satori seja.
Libertação do questionador, do sujeito que põe a questão, da dúvida e da certeza, o espanto da aparição misteriosa que salta ali como o surgir do límpido desconhecido.
Um dia alguém perguntou a Sua Santidade Sakya Trizin:
- Então, o que são as aparências?
- Um longo sonho, respondeu ele.
Quando o pensamento cessa a lua aparece.
Só a vemos quando a mente fica no estado de desapego, de silêncio, que é a realização profunda do Dzogchen.
Diz Santidade o Dalai Lama:
“A prática cotidiana do dzogchen consiste em cultivar simplesmente uma plena aceitação sem preocupação e uma abertura ante todas as circunstâncias. Devemos compreender que a abertura é o campo onde jogam todas as emoções e relacionarmo-nos com o próximo sem artificialidade, manipulação nem estratégias. Devemos experimentar tudo completamente”.
Dzogchen é a grande perfeição.
“A Grande Perfeição: o nono e o último veículo. Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenômenos e da presença natural das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição para sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos nesta perfeição primordial”, salientou Pema Wangyal Rinpochê.
O Satori vê dentro da verdadeira natureza, ou seja, da correta compreensão.
É considerado o primeiro passo para a budeidade.
É uma súbita iluminação, uma súbita intuição da verdadeira natureza, inexplicável e indescritível, e ininteligível.
Em “Viver através do Zen”, de Suzuki, se lê:
“O que significa "viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente”.
“Visto de outro modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?”
Fernando Pessoa, no seu famoso «O guardador de rebanhos», abre sua técnica de meditação, na melhor tradição dos mestres Zen.
Ele diz: sou um pastor de pensamentos.
"Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
«Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."
É quando seu corpo está deitado na realidade que ele reúne os pensamentos como um pastor suas ovelhas, para que não se percam nem se extraviem, para que não divaguem, nem delirem.
Reúne suas ovelhas dentro de si.
É o que o Zen diz: "Viver dentro de casa". Dentro de casa é dentro de si.
Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) cantava assim:
"As formigas vagarosas lutam para carregar as asas de uma libélula morta; As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo de salgueiro; as fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora; os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»
Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado", diz Suzuki.
Que perdemos?
Perdemos a beleza, a claridade.
Não vemos a beleza dos pássaros no céu, das flores na terra, da luz sobre a montanha, das sombras estreladas da noite, da lua na poça da água.
Porque a vida em si é bela, é algo misterioso.
Escapa à compreensão intelectual.
Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou o desejo de ser iluminado no Zen.
O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto".
No dia seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo.
Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim".
O monge chegou mais perto dele.
Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".
Como para o lutador de espadas. A alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente.
Uma realidade só se dá única.
Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar consciente de que estou pensando.
Como se diz no Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias".
Ou como o monge que chegou ao seu mestre e perguntou:
- Como posso atingir a Libertação?
- Quem te prende? - respondeu o mestre.