Proibições religiosas
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 30/09/2012, às 19H47
[Paulo Ghiraldelli Jr]
Você se sente uma pessoa livre ou uma pessoa proibida? Consegue ser sincero com você mesmo? Uma boa parte de nós se vangloria de fazer o que quer. Mentem para si mesmos. A proibição irracional ainda é a tônica na nossa sociedade. Nós obedecemos a regras que não questionamos e que, não raro, não nos trazem nenhum bem estar e não uteis para nossa vida. Há pouco tempo atrás as mulheres tinham de se casar virgem! Ainda hoje isso ocorre por pressão religiosa em alguns lugares, mesmo no Ocidente, no Brasil! Ainda hoje, em várias comunidades religiosas, as pessoas se casam com pessoas que não gostam, exatamente porque o pastor da Igreja assim decidiu. Exatamente nos dias atuais, a sexualidade dos gays, por exemplo, se torna motivo de ódio de religiosos! Há os que deixam de conversar com entes queridos porque estes não cumpriram alguma ordem sem sentido vinda do pastor ou do padre. Ou seja, mais vale a regra louca que o amor. Mil e uma proibições pouco razoáveis são postas sobre nossa cabeça, e nós as engolimos e obedecemos. Mas teimamos em dizer que somos livres.
“É proibido proibir” – essas inscrições foram postas nos muros de várias cidades de todo o mundo em 1968. As manifestações de juventude daquela época se deram contra as práticas de vida dos anos cinquenta, contra todo um mundo “arrumadinho” e “feliz”, que funcionava como fachada – principalmente nas telas do cinema – de uma sociedade em que nem todos estavam bem. De lá para cá várias proibições ético-morais que se revelaram pouco interessantes e até um tanto tolas caíram, mas muitas delas nunca deixaram de estar em vigência, principalmente para os menos informados e, enfim, para as pessoas que atualmente ainda seguem religiões fervorosamente.
Por que a religião faz proibições? – essa pergunta parece boba, mas não são poucas as pessoas que seguem vetos em relação aos quais elas nunca refletiram. “É pecado”, dizem umas. “Vai contra Deus”, dizem outras. Há pessoas escolarizadas que refletem bem sobre diversos assuntos, mas não conseguem pensar direito sobre o poder que a religião ganhou em suas vidas, fazendo-as obedecer a certas ordens pouco racionais. Como que uma pessoa pode se entregar assim a uma religião? Como que um adulto pode agir como uma criança amedrontada diante de escuro?
As religiões são códigos ético-morais populares. A palavra grega ethos significa os costumes que pertencem à esfera pública, a palavra latina mores são os seus costumes e hábitos que tem a ver com a esfera da vida privada. Daí termos, então, as palavras “ética” e “moral”. Por exemplo: falamos em ética quando comentamos a corrupção na política e em moral quanto a comportamentos sexuais. As religiões são as primeiras guardiãs de regras ético-morais para que uma sociedade seja uma sociedade. Algumas pessoas não percebem isso, de tão preocupadas que ficam com a ligação entre nós e os deuses que as religiões dizem que podem estabelecer. Mas, claro, religião nada é se não for um conjunto de regras dizendo sobre o que é errado e proibido e o que é certo e permitido. É para isso que servem.
Poderíamos criar leis sem ligá-las a qualquer divindade e, de fato, modernamente fizemos isso. No entanto, quando um povo se forma como nação, em sua origem a tendência é antes usar uma religião que uma constituição. Isso porque a religião traz uma vantagem: ao menos na consciência popular, ela resolve o problema da emergência do relativismo. As leis não podem se mostrar como tendo origem na cabeça de um homem ou grupo, mesmo que sejam estes os mais sábios da tribo. Ou seja, se as leis são divinas e não meramente obra dos mortais, elas são sábias e máximas – absolutas. Um mortal que queira mudá-las ou desobedecê-las estará se comportando arrogantemente como um pretensioso e, por isso, como um tolo. Como que ele poderia criar leis melhores que as geradas pelos deuses? Caso apareça alguém assim, deve ser desconsiderado ou punido.
Entre várias narrativas da formação de nações, a Bíblia é uma das mais ilustrativas quanto à relação entre determinado povo e a religião. Moisés estava comandando um povo que crescia em número e que ainda não tinha nenhuma lei geral. Então, com uma sabedoria incrível, ele escreveu os Mandamentos e os trouxe ao seu povo. Ele não iria dizer ao seu povo “eis aqui as leis que eu inventei e que vocês devem obedecer”. Por mais autoridade que ele tivesse, agindo assim não teria criado nenhuma legislação, apenas um catálogo de sugestões. Ele fez o correto: “eis aqui as leis que nosso Deus entregou diretamente a mim, para que eu as desse a vocês”. Isso não quer dizer que Moisés mentiu para o povo. Moisés pode muito bem – e acredito nisso – ter meditado diante de uma árvore queimando ou coisa parecida e, graças à sua experiência, se inspirado para escrever as leis. Assim fazendo, pode ter se sentido como conversando com seu Deus. Muitos de nós, ao refletir sobre algo que nos preocupa, temos a sensação de ouvir a nós mesmos falando, como se fosse outra pessoa. Temos até um nome para isso: “a voz da consciência”. Não é necessário nenhum misticismo e nenhuma religiosidade para entender esse episódio. Moisés, um homem que acreditava que seu Deus se comunicava com ele, falou sobre os Mandamentos para seu povo e isso foi extremamente importante para aglutinar pessoas distribuídas em tribos e, assim, gerar algo como uma sociedade. Aqueles Mandamentos poderiam ter ficado restrito ao seu povo, mas com o surgimento de Jesus e, depois, do modo que Paulo comandou o cristianismo, a mensagem judaico-cristã foi acolhida pelos mais humildes do Império Romano, depois passou a ser a própria regra oficial deste e, então, se espalhou pelo Ocidente. Os Mandamentos se mostraram possíveis de serem universalizados, eram compatíveis com o que queríamos como leis gerais. Ainda são! As nossas leis modernas e laicas, criadas posteriormente, além de não desmenti-los às vezes remetem a eles.
As religiões históricas, com tradição, possuem princípios conhecidos. Mas as religiões criadas aleatoriamente, ou melhor, as igrejas nascidas sem qualquer movimento histórico na base, são aquelas que chamamos caça-níqueis. Essas igrejas querem fiéis e mais fieis. Então relaxam ao máximo os princípios religiosos, para arrebanhar mais pessoas. Todavia, para que aquilo que se diz nessas igrejas não fique distante do que se parece com uma religião entre as pessoas mais simples, que é o que é o proibido ou o considerado “pecado”, essas igrejas criam determinadas proibições possíveis de serem cumpridas pelas pessoas. Assim, no caso do cristianismo, as igrejas caça-níqueis não repisam os Mandamentos tanto quanto comentam pequenas regras de comportamento. Sabidamente, os pastores pegam determinadas partes de Bíblia de modo literal, principalmente aquelas passagens que não possuem o grau de universalidade dos Mandamentos, em especial as que dão alguma proibição a práticas sexuais. Repisando isso, promovem a sensação entre os mais simples, em especial os simplórios, que eles estão ainda no interior de uma religião.
Por que as práticas sexuais são as preferidas como o foco de proibições? Ora, o sexo deixa as pessoas felizes e autoconfiantes, e pessoas assim possuem pouca vontade de procurar a igreja para pedir algo e pagar para receber milagres e coisas do tipo. As regras de proibição se tornam então meros arranjos para que a igreja que visa dinheiro ainda se pareça com uma entidade que sabe proibir e, portanto, apareça na consciência popular como sendo de fato uma igreja. O resto fica por conta do tamanho do templo e da oratória do pastor.
Há quem diga, no entanto, que não só esse tipo de igreja é um fator de deterioração da nossa vida livre, mas que toda e qualquer religião moderna – os monoteísmos – formam instituições que pouco colaboram para o nosso bem estar e nosso crescimento como indivíduos efetivamente adultos. Essas pessoas podem estar certas? Mas como seria um mundo em que a religiosidade se expressasse de outra maneira, isto é, sem que as proibições meio que cegas fossem o principal? Conhecemos um mundo assim, no Ocidente?
Conta-se que durante a discussão sobre as mudanças do século XVIII, em especial os acontecimentos que antecederam a Revolução Francesa, o filósofo Diderot disse ao seu amigo, também filósofo, o célebre Voltaire, algo parecido com o seguinte: “em uma nova ordem e em uma nova sociedade toda moral será laica, obedeceremos a lei pela racionalidade da lei, de modo que todos poderão ser ateus”. Diderot queria ficar livre da Igreja. Então, Voltaire respondeu algo mais ou menos assim: “você e eu podemos obedecer a lei pela sua racionalidade e assim faremos, mas e eles?” e apontou para a janela, referindo-se às massas populares.
Muita gente que não tem qualquer religião pensa assim como Voltaire: o povo precisa de regras que sejam de fácil entendimento, que sejam passadas pelos próprios pais e que, enfim, estejam na sociedade como uma coisa bem mais forte e com a aparência de objetividade que uma constituição não conseguirá lhes dar. Assim, mesmo para intelectuais liberais, muitas vezes a religião parece ser uma espécie de “mal necessário”. Um mal? Sim, uma vez que suas proibições não se apresentam bem justificadas, não nos fazem pensar e refletir e, sim, nos fazem autômatos a seguir tradições, elas são ainda um mal. Afinal, vivemos em um mundo de ciência, cercado de tecnologia e, ao mesmo tempo, com a cabeça povoada de proibições vindas de deuses e demônios.
Não digo que possamos viver sem religião. Mas não poderíamos ter uma relação com a religião que provocasse a nossa inteligência ao invés de embotá-la? Não haveria uma religião que ao invés de nos fazer vacas de presépio, que ficam paradinhas obedecendo ordens ininteligíveis, pudesse aguçar nosso cérebro para nos tornarmos mais livres e mais criativos?
Paulo Ghiraldelli