No conhecido, senão famoso Itinerário de Pasárgada. (Poesia completa e prosa. Org. pelo autor. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986, p.81) Manuel Bandeira (1886-1968) magistralmente narra a gênese de muitas de suas peças poéticas para a alegria de muitos analistas de sua obra. Nesta crônica fazemos referência a mais uma de suas explicações das origens, ou melhor, dos embriões de sua poesia. 
                         Bandeira refere que do tempo em que residia na rua Morais e Vale, ou como ele chama na sua agudeza plástica, “rua em cotovelo, no coração da Lapa”, ele passou a ter, diante dos olhos, não mais aquela privilegiada paisagem vista do alto do Morro do Curvelo, onde habitara antes e de lá avistava a paisagem carioca do alto para o baixo, ou como ele melhor diz, “sobranceiramente”. 
                        Agora, da Rua Morais e Vale, era outra coisa. Bandeira, do interior da nova morada, o que via era, conforme sua descrição, as árvores do Passeio Público, os pátios do Convento do Carmo, a baía, a capelinha da Glória do Outeiro. Ocorre, entretanto, que, quando se aproximava da janela, não era mais o deslumbramento da paisagem majestosa, mas a visão grotesca, a ausência de solenidade, o tom menor, que, pelos seus olhos e pela sua “meditação”, passavam ao primeiro plano, ou seja, o do sentimento, da humildade bandeiriana, daquela paisagem onde o espaço se rebaixava para a elevação da nobreza do pensamento. O grotesco se humanizava e sabe, leitor, com que ingredientes? Com a visão miúda, verista: o “becozinho sujo” lá embaixo, e sobretudo a paisagem humana formada de gente simples e anônima : lavadeiras, costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés. Era esse, pois, o leit-motif, na composição do poema “Poema do beco”, que se encontra no livro Estrela da manhã (1936, edição citada, p. 288).
                       Pois é  esse poemeto de Bandeira, transcrito ao final destes commentários,quase um haicai, que eu, diferente da intenções reflexivas e sociais do poeta do Recife, procuro parodiar com a minha desculpa, leitor, pela ousadia de me meter na seara poética. Da mesma forma que em Bandeira, certo dia, ou noite, nem mais sei ao certo, no espaço doméstico e silencioso em que se encontram meus livros, de repente fui assaltado pela força da saudade – essas “Asas de dor do Pensamento” da imagem sinestésico-plástico-abstrata dacostiana, e, então, me atrevi a compor uma paródia sem nenhuma intenção , é claro, de ridicularizar o texto de Bandeira.
                      No entanto havia, dito, via e-mail, a um dos meus dois filhos, que, bandeiranamente falando, não passava de uma brincadeira séria (com o perdão do oxímoro).. Explico, entretanto, que o termo “brincadeira” a que me refiro fica por conta da temeridade da minha elaboração “poética”. Que me desculpem as Musas, sobretudo Erato. É que não tive outro jeito senão botar no papel o meu texto, ao passo que o termo “sério,” além de exprimir a sinceridade que desejo passar ao leitor, foi empregado como um exercício de espontânea técnica intertextual. Utilizo a paródia no sentido de discurso marginal que, segundo Gilberto Mendonça Teles (A retórica do silêncio. São Paulo: Cultrix/MEC, 1979, p.28) mantém com o modelo “uma relação”, entre outras, de “identidade” e que, no meu caso, seria identidade de intenção francamente de homenagear o poeta recifense.

                      De resto, essa identidade evidentemente é mais no plano da motivação intertextual-semântica. Para lembrar o leitor, Bandeira era um refinado mestre da intertextuallidade, tanto quanto o foi, em menor grau, o nosso Da Costa e Silva, aliás, segundo já demonstrei em estudo, verdadeiro prógono de Bandeira no uso desse recurso.
                     Concluindo, veja, leitor, o resultado do meu exercício poético e, na minha particular situação criativa, inelutavelmente derivado do sentimento repentino da saudade de Teresina e, por extensão, do Piauí. Compare-o, mais abaixo, com o de Bandeira.

Igreja de São Benedito

Que me importa o Rio de Janeiro, o Calabouço,
O Flamengo, Copacabana, Laranjeiras, o centro
Da cidade, o que vejo é a Igreja de São Benedito,
À noite, com dois jovens à procura contínua da
aventura da carne.

POEMA DO BECO
Manuel Bandeira

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
-- O que eu vejo é o beco.

Nota; Texto  corrigido e melhorado.