[Paulo Ghiraldell]

A mulher pode e deve maquiar-se. Falando da modernidade e comentando obra de artes plásticas, Baudelaire escreveu assim sobre a maquiagem: “a mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é preciso que desperte admiração e que fascine; ídolo, deve dourar-se para ser adorada” (Baudelaire. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011, p. 64).

 
Com isso, Baudelaire não foi só capaz de gerar um bom retrato da modernidade que, enfim, podemos afirmar como valendo também para a pós-modernidade ou qualquer mais “pós”, ele foi bem além. Trata-se aí da compreensão do homem como o que se faz homem por meio das antropotécnicas, na expressão feliz de Peter Sloterdijk.
 
O homem é um animal de próteses, escreveu alguém, talvez um famoso psicanalista. Antropotécnicas são procedimentos que fazem vingar a hominização. Propostas de hominização se fazem por técnicas de hominização. Boa parte dessas técnicas inclui um regime crescente de confecção e uso de próteses. Há aí uma gramática do apêndice que se torna não só necessário, mas efetivamente o que é próprio para que possamos falar em algo que Platão chamou de “o bípede sem penas”.
 
Um elemento de antropotécnica é a prótese da maquiagem. Não à toa a maquiagem é chamada de cosmético. Cosmético vem de cosmos, kosmos em grego, que significa o todo organizado e, por isso, pela organização e harmonia – o contrário de kaos –, o que é belo. O cosmético é prótese. Doura o ídolo que deve dourar-se para dourar o ambiente e ser ídolo. Doura para harmonizar. Cosmetizar é harmonizar, organizar o rosto e tudo o mais, dando uma ordem que é o sinal da beleza. Os gregos nunca viram beleza no desorganizado e caótico. A beleza é da ordem. Trata-se da harmonia e, claro, da proporcionalidade. Há algo de belo na matemática e vice versa. A mulher é superior ao homem, então, porque usa logo cedo a prótese. Desenvolve com ninguém a antropotécnica que, no caso, é a prótese. Maquia-se e, com isso, suplanta a natureza. Do artificial que se torna uma segunda natureza, gera o sobrenatural.
 
A modernidade abriu-se para a ideia de maquiagem como apêndice da mulher-mulher. Ou seja, trata-se da mulher que cumpre funções que não são do homem, a prostituição em forma de sonho da democratização do desejo. Mas, em seguida, na pós-modernidade e nos movimentos da pós-pós-modernidade, toda a vestimenta e maquiagem que um dia pertenceu às prostitutas, foram incorporadas pelas mulheres em geral. Lingeries e maquiagem se casam. A maquiagem é a roupa do rosto. Há alguém que negue, hoje, que isso é belo?
 
Voltando a Baudelaire no mesmo escrito citado, podemos vê-lo falando de como o homem torna-se cada vez mais, em seus traços físicos, aquilo que veste. O vestuário traz para o homem o que ele entende como o belo, “arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do tempo, os traços do seu rosto”. Então, ao falar da mulher e seus trajes, diz que cumprem uma função especial: “a matéria viva tornava ondulante o que nos parece muito rígido” (p. 9). É assim que somos enquanto o animal que se veste.
 
O vestuário um dia irá se incorporar, literalmente. Como ocorreu com a tatuagem e, mais radicalmente ainda, como ocorrerá com os chips que serão colocados em nosso cérebro, ou que já estão sendo colocados para correção de patologias. Ainda veremos o dia em que nossa conformação dita natural e nosso vestuário serão o mesmo, inclusive com possibilidades (infinita) de troca. Nossa segunda pele será a primeira e vice-versa, até chegarmos à situação em que jamais poderemos distinguir uma coisa e outra. Seremos o animal que se veste, mas num sentido que adoraremos, que é o do camaleão. Afinal, desde sempre sonhamos com isso, sem que possamos distinguir o sentido metafórico-moral ou literal. O homem é ser que engana. Usaremos roupa como quem usou óculos e passou para lente de contato e, ao fim e ao cabo, operou os olhos para alterar e grau. Antropotécnicas levadas ao extremo. Sim, mas não termina aí a coisa: um dia teremos engenharia genética para já nascermos vestidos, em favor de várias modas, como podemos hoje fazer para evitar algumas doenças. Ninguém mais irá falar, a essa altura, de “nazismo” (nem habermasianos restantes, se puderem restar!). Todas as clínicas de estética e engenharia genética já estarão acopladas à indústria da moda, do vestuário e do design. Fazer sobrancelhas ou cílios permanentes será algo de uma prótese antediluviana.
 
Não há nenhuma conversa aqui, nisso que anuncio, sobre “ficção científica” ou “futurismo”. Falo aqui do funcionamento das antropotécnicas que nos geraram: foram elas, já, que nos fazendo nascer como abortos no primitivo mundo das savanas africanas, isto é, precoces, nos fizeram diferentes. São elas, agora, que nos mostram que se somos pós-pós-modernos, somos também modernos enquanto filhos de Frankstein. Nada mais natural que o artificial, em uma época moderna ou pós-pós-moderna.
 
Para entendermos a reunião atual sobre o clima, que ocorre em Paris nesses dias, temos antes de tudo de ver como que no presente momento estamos levando adiante nossas antropotécnicas e nossas próteses. Entender o mundo como casa ou como nave espacial é parte de entender o homem e a mulher como construções acima da ideia de “construção social” da velha sociologia. Vamos artificializar ambientes cada vez mais, uma vez que nós todos já seremos naturalmente artificializados. Já estamos fazendo isso no processo de criação de nossos apartamentos e no sentido de tomar a Terra como uma estação orbital. Não à toa temos utilizado, de uns tempos para cá, a palavra “sustentabilidade”, que é típica de quem se sabe vivendo num lugar artificializado. Afinal, se subimos, temos de nos manter no altura que alcançamos.
 
Logo será ridículo, então, dizermos um ao outro, “você foi superficial”. Seremos mais leves que hoje. Nessa sociedade da leveza, da extrema leveza, teremos sempre alguém reclamando por algum peso, alguma gravidade. O que dirão? Nada além do que temos feito hoje quando enfrentamos a insustentável leveza do ser. Temos escolhido necessidades para torná-las necessárias. Teremos de ver qual frivolidade deverá ter um ar grave. E teremos de ver nossa liberdade como sendo, cada vez mais, a liberdade de poder escolher quem vai nos enganar.
 
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.