Poesia e rupturas em Luiz Filho de Oliveira (4)
Por Cunha e Silva Filho Em: 05/01/2011, às 21H26
Cunha e Silva Filho
3. BARDOAMAR: TEMAS, LINGUAGEM/NS E FORMA/S
A profusão grafemática que se espraia por toda a extensão da 1ª parte, incluindo poemas de diferentes extensão, que vão de 15 versos até poema de um só verso, reforça e reafirma as intenções do autor para a importância atribuída à visualização, à maneira do Concretismo de 56, com seus correspondentes recursos verbovocovisuais e bem assim a outros recurso trazidos pelas vanguardas brasileiras( Poema-Processo, Poesia Práxis, Neoconcretismo).
Só que em Luiz Filho há um passo dado a mais,: o recurso de desenhos de figuras e de objetos, ou partes do corpo humano não-figurativos, como no enigmático poema “cama suma” (p.21) introduzido por traços geométricos (um retângulo encimado por linhas geométricas figurando uma cabeça humana usando óculos e exibindo uma forma de boca. Sobre a cabeça (masculina? feminina?), os cabelos (?) semelham raios elétricos O retângulo inclui formas de ângulos, num dos quais existe um par da letra “y” (?) simetricamente colocados um do lado do outro. . O poema a que corresponde àquele geometrismo vale mais pelo seu ângulo semiológico do que pela sua apreensão lógico-analítica, onde a palavra poética fala mais de si do que pela captação da mensagem decodificada. Seria antes um mero jogo abstracionista pela sua irredutibilidade cognitiva.
Na 1ª parte, ao todo composta de 28 poemas, há que se notar, inicialmente, a forma gráfica da escrita manual impressa. Nesta antesala do conjunto de poemas se estabelece o mood em que formas de linguagens vão delimitar a fronteira dos dois temas dominantes desses versos: a viagem e o amor que simultaneamente lhes vão insuflar vida como criação poética
Entretanto, - convém acentuar bem - aqueles temas não são convocados arbitrariamente. Cumpre desentranhar-lhes, e aqui estou me reportando ao poema de abertura, “BardoAmar”( p. 18) que dá título ao livro, o alcance: a viagem e o amor de que se cogita falar aqui não é a real, a empreendida em confortável embarcação. De resto, o índice icônico – a ilustração de uma caravela – bem reforça os meus objetivos de entendimento do poema, consoante, mais adiante, comentarei.Antes é uma viagem pelas palavras, ou seja, pela poesia, com todas as suas reverberações. A viagem seria, para completar, a do encontro do amor, liame indissociável entre Arte e Sentimento. Sob um pano de fundo histórico, remetendo às conquistas portuguesas ultramarinas, na melhor hipótese à tona vem a epopeia lusíada. O poema é constelado de lexemas alusivos àquela viagem: “cenas líquidas”, “caminho”, “tormentas”, “amarras”, em fusão com “velozes”, “velas”, “a mar”, expressão esta última que também remete ao verbo “amar”, caso houvesse a aglutinação dos vocábulos, expediente gráfico muito comum em Luiz Filho.
Deste primeiro poema para os seguintes, a inflexão se dirige mais fortemente para o terreno do sentimento amoroso, a começar do sugestivo poema “faróis” (p. 18). O “eu-lírico” desse poemito de três versos neste ponto divisa um lugar procurado e seguro. Já a esta altura, se constata um tipo especial de construção sintático-poética que, no mínimo, me dá a sensação de emprego latinizante, aquela construção na qual a ordem dos termos oracionais se faz entendida pela subordinação às flexões das declinações.
Em outras palavras, a combinação dos termos oracionais rompe drasticamente a estrutura plausível de um verso tradicional, dir-se-ia de dicção romântica, parnasiana, simbolista ou mesmo moderna. E isso não é de modo algum motivado por figuras de construção – tropos - violentamente transgressoras da ordem direta do discurso referencial, como hipérbatos, anástrofes e sínquíses, empregadas, sobretudo, na poesia clássica e no Barroco. O estranhamento da construção em alguns poemas de Luiz Filho se situa mais no terreno do mimetismo rítmico-melódico da sintaxe poética. Talvez seu propósito seja mesmo o de propiciar o choque, o estranhamento, a desautomatização, a desestabilização nos hábitos usuais do leitor de poesia de corte conservador para adequar-se ao mood do poema à maneira de José Albano, Manuel Bandeira ou Da Costa e Silva, por exemplo, com seus conhecidos poemas trecentistas (Bandeira), os Vilancetes e Palimpsestos (Da Costa a e Silva) e os sonetos de sabor camonianos (José Albano). Vê-se que se tem diante de nossos olhos um artista do verso sintaticamente hermético, criando opacidades em todos os sentidos e estratos da linguagem.
Este experimentalismo arrojado, a meu ver, só possui uma única vantagem: transformar a dicção poética por meio dos sentidos, pelas sensações rítmicas, melódicas, pictóricas, causadas no leitor, lembrando de perto por vezes alguns preceitos dos simbolistas buscados em Verlaine: “De la musique avant toute chose.”
O segundo poema, “Poesia na morada do aluno” (p.19), pela desarticulação de sílabas e pela rearticulação e ressignificação daquelas resulta numa curiosa e original paródia do conhecido e antológico poema de Oswald de Andrade: “Amor /humor”, isto é, aquele poema no qual , abaixo do título (“Amor”) se segue um único verso-poema. Não é gratuito o título do poema de Luiz Filho, que parece inspirado no título da obra de Oswald de Andrade Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade (1927), do qual consta o poema “Amor”
Na reinvenção de Luiz Filho, o humor já presente em Oswald de Andrade, ainda se radicaliza mais e cria novos sentidos e possibilidades conceituais via humor, além de ser acrescido dos próprios reforços metalinguísticos (sobretudo os utilizados na publicidade como fazem sugerir as letras em maiúsculas) e poéticos. As alterações morfológicas, as justaposições, os sinais de pontuação ( reticências, ponto de exclamação, bem como ainda o início de cada linha poética em letra minúscula que, pela primeira vez, encontrei no excelente poeta português Vasco Graça Moura, a disposição espacial deslocada dos vocábulos “amor” e “humor” não simétrica e com o primeiro verso oswaldiano partido, demonstram a perícia da apropriação para outras mudanças compositivas a partir de um poema-fonte. Para concluir: a dupla leitura que o poema parodizado, no contexto fonológico, poderia assumir caso se pensasse da perspectiva co-particpante e lúdica do leitor ao trocar o fonema vibrante alveolar em maiúscula (“R”) pela lateral alveolar, redundaria num vocábulo que, subtextualmente,, nos salta à vista: “amolação,” numa permuta de fonema bem afim com o sentido geral humorístico-parodístico do 3 º verso do poema. Veja-se o o poema na sua inteireza:
a-MOR
HUMmm...
a MOR ação!
Em outras palavras, o terceiro verso adquire o duplo sentido pela injeção de novo semantema e de nova desarticulação silábica entre o primeiro e o terceiro versos. Finalmente, o próprio título pode ainda ser lido no seu duplo sentido se porventura o leitor co-participante deseje justapor os elementos morfológicos do sintagma “na morada”: “namorada’, criando, destarte, mais um terceiro novo sentido: “ poesia , a namorada do aluno, que dá pano para muitas mangas interpretativas cujo epicentro é a arte poética em si.
O que se segue a estes dois poemas é uma continuidade transgressora da estrutura sintática de versos, aliada a outras invenções de desarticulação silábicas, de inserções de desenhos esquemáticos, habilmente ilustrados pelo autor. Tudo isso reitera um elemento diferenciador da poesia do autor e que serve de sustentação aos procedimentos compositivos de seu verso: a capacidade de produzir novos sentidos e de revesti-los de uma sintaxe que lembra a construção latina, segundo já mencionei.
O fato mais inusitado do aspecto de estranhamento do verso de Luiz Filho é cantar o amor carnal tendo o cuidado de não chocar nunca o leitor nos seus melindres moralistas, contudo produzir erotismo em meio a rupturas de malabarismos de imagens que mais prevalentemente se pressentem do que gratuitamente se apresentam ao leitor. De resto, o poema de Luiz Filho, antes de tudo, e já o frisamos, solicita a participação do leitor, constituindo, muitas vezes, um esforço de coautoria diante das direções apontadas no corpo do poema, segundo se pode ver igualmente no segundo livro dele, Ondehumano.
Um bom exemplo é o poema “conjogal”(p.27), no qual o poema visualmente representa a forma de um jogo da velha.É bem inventivo e exige maior habilidade participativa do leitor. Naturalmente, esse tipo de poema visual, assim como outros na extensão do livro, amealha o que de bom se legou das vanguardas europeias e das suas derivações no Brasil: os grafemas, a espacialidade horizontal, diagonal e vertical, a circularidade, o lado ideogramático que remonta à Antiguidade e, no Simbolismo brasileiro, encontrou diversos cultures, inclusive Da Costa e Silva e Elmar Carvalho, entre outros autores piauiense e de outras partes do país..
O mesmo poder-se-ia afirmar do poema “misteros” (p.25) . Neste poema também o grafismo que, no caso, é uma imagem preta, ou melhor, um desenho, nos conduz visualmente para aquele conhecida figura da “Wife or mother-in-law” que W.E. Hill insere no American Journal of Psychology e que está reproduzida por Antônio Gomes Penna na obra Percepção e aprendizagem.( 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1968, p. 14). Se olho para esta figura de um ângulo dado, percebo, no desenho que introduz o poema, uma figura de um objeto em forma fálica e meio em curva, com uma extremidade lembrando uma cobra. Se, por outro lado, observo de ou outro prisma o desenho escuro, vejo um perfil humano em branco e com sua sombra escura ampliada.
O título, vocábulo criado artificialmente por aglutinação, provavelmente formado de “mistério” + “eros.” aponta para o tema da iniciação sexual. A ambivalência, um das constantes da poesia de Luiz Filho, é a espinha dorsal de inúmeras formas lexicais ou fônico–estilísticas. Os quatro versos que constituem o poema se revestem, na sua disposição sintática, de um caráter de descoberta (da poesia?) ou do dionisíaco prazer do sexo.
Não poderia deixar de comentar último poema desta 1ª Parte, o da páginas 30-32, sob o título “Amarração.” Formado de 12 estrofes, em tercetos, e de extemnsão aassimétricas me parece o mais belo poema desta parte. Leio-o em voz alta, com o o faria com um poema de Poe, e percebo seu ritmo, sua melodia, sua musicalidade e, por acima disso, um misterioso halo notálgico-amoroso. Poema feito de muitas camadas superpostas. Poema-síntese servindo a muitas chaves de leituras.
No campo semântico, no atrevimento de foras verbais irradiando células semânticas, no tema do amor liricamente bem urdido, nas camadas fônicas (aliterações), nas alusões intertextuais exógenas e endógenas, tendo como ponto referencial o poema épico camoniano, a mitologia desconstruída pelos novos tempos pós-modernos, a referência direta ao título do segundo livro do autor (dado intratextual), conforme se vê no 3ªº verso da 9ª estrofe Poema pleno de alusões diretas, indiretas e desconstruídas nos sentidos, e nas formas lexicais, operando ressignificações originais e inesperadas. “Amarração” reúne três temas: o amor, a linguagem e a poesia. Sua leitura é pluridimensional e, como todo poema bem realizado, não se exaure aos caprichos do leitor ou do critico.
A poesia de Luiz Filho - já se pode até aqui tentar extrair uma conclusão provisória em suas linhas gerais -, é a de um artista do verso ao qual o leitor deve estar continuamente alerta, particularmente do ponto de vista intelectual, dado que sua dicção encerra pelo menos dois traços constantes: a surpresa e a duplicidade ou multiplicidade semântica, compreendidas nas ousadias sintáticas do discurso lírico, gerando sentimentos díspares e forte humor e/ou ironia no seu universo poético, num vigoroso e original ludismo fonético, fonológico, visual, espacial e, acima de tudo, numa predisposição infensa às decifrações explícitas e lineares ao se tornarem objeto de exegeses do seu espaço interno de expressão significativa (mensagem, conteúdo, ideologia e cosmovisão) e sua exterioridade significante esteticamente formalizada (retórica e todos os elementos constitutivos do verso, do poema ( estrofe, aliteração, cadência, ambigüidades, mood, ritmo, métrica (se houver), gênero poético, tropos, estrutura, entre outros artifícios da arte versificatória, considerado esta na sua acepção temporal mais ampla possível). A poesia de Luiz Filho tende, no geral, a oferecer resistências e obscuridades inquietantes.
A 2ª parte, se o leitor bem notar, a maneira de subtítulo, retoma invertidamente os três últimos vocábulos do verso final da “I PARTE”: “em mar fragil mar”. Nesta parte, o tipo de escritor muda para um outro tipo impresso, não o manual impresso da primeira parte.
Os poemas da segunda parte reunidos em número de 27, aceleram ainda mais as estratégias de desconstrução e, desta maneira , se vão impondo aos olhos do leitor com toda a riqueza provinda do lirismo amoroso, ainda que continuadamente de natureza carnal, transfundido em inovadoras formas de elaboração poemática, em ousadias metalingüísticas, metapoéticas, aliando beleza de sentimentos a beleza de linguagem.
O caráter de rupturas poéticas em Luiz Filho é traço diferencial entre ele e outros poetas de sua geração. Todas essas subversões no verso operacionalizadas pelo seu estro são na realidade modos de cultivar poemas medularmente modernos mas não radicalmente destituídos daquilo que a grande herança da poesia antiga lhe ensinaram e foi antropofagicamente por ele assimiladas, sendo para mim este o grande caminho que poetas que se querem modernos deveriam buscar. Não ler e aprender com o passado me parece uma atitude leviana e contraditória a um só tempo.
No verso de Luiz Filho pressente-se o quanto sua natureza poética aqui e ali, dialoga com a tradição, seja com a Antiguidade, grega ou latina, seja com a poesia provençal, com o quinhentismo camoniano, com o Arcadismo, com Oswald de Andrade – presença nele forte -, com Carlos Drummond de Andrade, entre outras vozes da lírica brasileira e universal.
Poeta ubíquo, nas fontes do dialogismo atemporal nem por isso deixa de ser uma artista do verso bebido nos tempestuosos e voláteis tempos pós-modernos, antenando-se ciberneticamente e pondo no seu verso a experiência e o contato dos meios eletrônicos cada vez mais sofisticados e em constante mutações plurifuncionais. Inserido de corpo e alma na pós-modernidade, a poesia de Luiz Filho planta-se no tempo presente, numa atitude que poderia repetir a natureza orgânica do poeta Drummond como o mais representativo artista do verso que tomou para si o presente, na poesia e na prosas, como matéria primacial de sua poética. Instalando-se no tempo presente, o poeta Luiz Filho se deixa impregnar do “aqui e agora”, primado do instante, no afã de se afirmar e firmar o seu objeto poético feito da matéria humana e dos produtos e e conquistas do nosso tempo desagregador)
Na 2ª parte, tudo se torna possível em termos de experimentalismos, nos quais as palavras como que assumem o controle de si mesmas, espécie de silêncio do verbum, onde as palavras são capazes de criar e recriar sentidos insuspeitos em códigos cifrados. Instaura-se, agora, o reino dos hermetismos e dos malabarismos obscuros à Mallarmé, combinando, segundo já ressaltamos, características simbolistas com ludismo, ironia, humor e subtextos indevassáveis a olho nu.
Nesta instauração de avanços ousadíssimos do discurso poético, Luiz Filho se torna um virtuoso. Entretanto, a persistir nestas estratégias de virar pelo avesso a função poético-comunicativa, ele se arrisca a perder-se no puro hermetismo indesejável ( e aqui estou com José Guilherme Merquior, ao falar da poesia humilde de Bandeira) a um poeta que aspira ao entendimento sem abrir mão da qualidade e originalidade dos versos.
Não lhe posso sonegar a invejável tendência à inventividade, à disponibilidade para novas formas de diálogo com o leitor, com a poesia e consigo mesmo. Não é possível não se comover com os versos do poema “amamos”(p. 40):
Amamos
quando não se-sentem
passado & presente
o verbo nos-arremessa ao mágico
neutralizando nosso espaço de sujeitos
ao acaso & próximo... só
o advérbio mente ao tempo
Ou não se divertir com o poema “Caro Prato” (p.43):
Caro Prato
Sem nenhuma etti ..........................Queta
O amor fugiu do card...............Ápio
E quem pagou o p......................Ato?
Ou essoutro com ressonâncias oswaldianas (p. 35):
Voz nua à lua nativa
contrassopram em mim
lembrn cãs de ti
a selvar-me salvagem
como tupis amórfagos
ritos em vocação nova:
Catiti! (Continua)