Poesia e rupturas em Luiz Filho de Oliveira (3)
Por Cunha e Silva Filho Em: 02/01/2011, às 16H28
2. DA GEOMETRIA DA CAPA ÀS DESARTICULAÇÕES SILÁBICO-SEMÂNTICAS. No início deste estudo da poesia de Luiz Filho tinha chamado a atenção do leitor para um aspecto dominante de BardoAmar: o campo pictórico. Só para alertar, lembro a circunstância de que neste livro o elemento visual se enlaça umbilicalmente em toda a extensão do volume, o que é facilitado por ser o autor quem preparou as ilustrações do livro. Ou seja, é intencional a fusão aqui da palavra poética com a arte visual, remetendo logo ao velho preceito horaciano do ut pictura poesis. Exteriormente, torna-se palpável o largo uso de natureza icônica entre as linhas do desenho e a palavra conotada.
Veja-se o anverso da capa do volume onde se harmonizam intimamente o título do livro e os elementos pictórico-geométricos, já entremostrando, então, rupturas sintagmáticas, recurso amplamente empregado pelo autor.Em BardoAmar, o verbo em forma nominal reduzida do infinitivo se aglutina a uma anacrônica e solene designação da palavra “poeta”, além de que essa mesma aglutinação cria certa ambiguidade – recurso igualmente encontradiço neste poeta - despertando associações, por exemplo, com variadas estruturas possivelmente desdobráveis : “amar um bardo,” “o amor de um bardo” ou até mesmo uma associação virtualmente possível e de valor morfológico, atribuindo a “bardo,” por derivação imprópria, um valor adjetivo.
A par disso, no espaço do mencionado anverso da capa, há um significativo desenho de uma caravela que, por sinal, se repete três vezes mais no corpo do livro. Cabe, neste sentido, uma observação. Na chamada advertência, ou prólogo do livro, Luiz Filho, à semelhança de antigos poetas românticos, à frente Gonçalves de Magalhães, nosso introdutor do Romantismo brasileiro, com os seus Suspiros poéticos e saudades (1836 ), reporta-se a uma viagem, ideia reiterada pelo habilidoso pastiche dessacralizante e oswaldiano do terceiro verso do Canto I, Proposição do clássico épico Os lusíadas: “.. bares & mares muito gigantes navegados.” De resto, este tipo de procedimento técnico do autor, ao longo do livro, se vai novamente insinuar junto a leitor. Quero antecipar que as alusões, tão poderosas hoje na poesia contemporânea e que há tempos já fora prenunciada pelo critico inglês I. A Richards (Princípios de crítica literária. Porto Alegre: Editora Globo, 1967, p.181-185), em BardoAmar se fazem igualmente presentes, em que o antigo, i.e., o passado, em termos de estilos literários, esteticamente deliberado aqui e ali, se mostra fértil, provavelmente naquela mesma linha de pensamento da poesia de Manuel Bandeira (O itinerário de Pasárgada) segundo a qual o poeta apenas desejou prestar homenagem ao legado de ancestralidade lírica.
O texto “Advertência” (p.10), finalmente, embute as pressuposições estéticas e escolhas do autor que, em lentes ampliadas, indiciam uma proposta de poema na qual podem conviver estilos e tempos diferentes (traços de pós-modernidade da lírica contemporânea) de linguagens em diálogo sincrônico ou contemporâneo com as matrizes da nossa formação estético-literária, num amálgama tenso ou irônico-humorístico em construções ousadas que, ao longo do texto, se desconstelam pelas possibilidades fônicas, rítmicas, léxicas e sintáticas, as quais me lembram um dado linguístico de capital importância – a funcionalidade do fonema na formação da palavra, onde a troca de um fonema por outro (paronomásia) resulta noutro vocábulo ou num todo sem sentido na horizontalidade ou transversalidade do ato da leitura. O resultado, além disso, muitas vezes enseja um inteligente, criativo e lúcido jogo semântico. Esta é uma das chaves de leitura que o texto poético de Luiz Filho parece propor ao leitor atento.
A distribuição dos poemas no espaço do livro merece ainda um comentário. BardoAmor se divide em três partes, sendo que o primeiro vocábulo “parte” sofre desarticulação gráfica de duas maneiras: a) o poeta primeiro o grafa “PAR...TE” e, em seguida, o escreve “PAR-TE”. Ora, tanto numa forma anticonvencional da grafia normativa portuguesa quanto noutra, as duas novas formas remetem, enquanto significantes, a novos sentidos, quer dizer, os dois modos gráficos, a par de acenarem para outros acepções, cataforicamente indiciam séries de títulos de poemas que se caracterizam por subversões sígnicas assentes em ambiguidades de espaços poéticos inerentes a essas desarticulações de formas grafemáticas inusitadas, as quais são peculiares à poesia ressignificadora de que fazem parte as vanguardas que surgiram na poesia brasileira contemporânea.
Em outros termos, o espaço poético no qual Luiz Filho trabalha ou retrabalha seus versos aspira a um inegável jogo lúdico-experimentalista no arcabouço dos verso ou dos poemas, criando os estranhamentos ou desautomatismos da modernidade . Neste caso, o autor compele o leitor a uma tarefa conjunta de decifrações ou possibilidades múltiplas no campo semiológico da sintaxe poética proposta.
Colhamos aleatoriamente, para ilustração, um exemplo desta antinormatividade sintagmática ou apenas lexical. “I... de IN” (1ª parte); “idas e vinhas” (2ª parte); “ a casa: lar” (3ª parte). Não preciso afirmar que, entre este exemplo de atomização vocabular, nem tudo se presta a decifrações possíveis, recordando, aliás, que nem sempre a poesia se faz para o claro entendimento. Ao contrário, muita gente já ressaltou que a poesia é para ser sentida mais do que compreendida Os simbolistas que não me deixem mentir: “Nommer um object c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème que est faite du bonheurs de deviner peu à peu: suggérer, voilà le revê. C’est le parfait usage de ce mystère que constitue le symbole; évoquer petit à petit um object pour montrer um état d’âme par une série de déchifffrements”( Mallarmé, apud CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 12 ed. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia. Editores, 1964. Prefácio de Medeiros e Albuquerque, p. 342-343).
Ou se não, neste passo do mesmo Mallarmé: “pois deve haver sempre enigma em poesia, e é o objetivo da Literatura, - e não há outro – evocar os objetos. (apud MOISÉS, Massaud. Vol. IV – O simbolismo (1893-1902). São Paulo: Editora Cultrix, 1964, p. 36). Ou, finalmente, a poesia entendida como aquele coup de dés mallarmaico, poesia fundamentada não no tema, mas na estrutura verbo-visual (BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed.. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 476 ).
No exemplo do poema em questão, na voz do “eu lírico” há uma tácito encontro entre dois seres em situação sentimental-amorosa, porém criteriosamente camuflada no espaço do poema onde fonemas fricativos alveolares surdos se alternam em seus correspondentes sonoros ou mesmo em arquifonemas (CÂMARA, Mattoso), ou ainda, em aliterações, alternam o timbre das vogais. Ou seja, no conjunto da peça poemática, o contexto fônico está sempre a sugerir semelhanças de fonemas (aliterações) e o leitor para ele deve estar sempre com um pé atrás para possíveis intenções sígnicas advindas do todo do peça. Atente-se, ademais, para o fato de que o tratamento “senhora” ecoa para tempos e estilos do velho trovadorismo português (“cantiga de amor ”).
O segundo exemplo, “Idas & vinhas”, bastante criativo, faz um jogo de palavras no qual a primeira leitura, se não cuidadosamente feita, redunda numa segunda apreensão sonoro-significativa a partir do título do poema. Os versos aí, construídos com muita originalidade, em humorísticas aliterações ( 1º verso) formam um enjambement com a primeira palavra do segundo verso. Novamente, aqui o duplo sentido expresso pelo vocábulo “vinha” (1º verso), com o qual se pode associar ao verbo “vinha” ou ao substantivo “vinha” (= a plantação de vinho, o vinhedo). O sentido humorístico mais uma vez se pode ver no vocábulo “tinto’ (espécie de vinho), combinando com o adjetivo “distinto,” que surpreende o leitor e ao mesmo tempo se desconstrói. Essas estratégias de construções no autor são recorrentes.
Da mesma forma, no segundo verso, “cerebração”, que, no ato da leitura corrente, pode levar tanto para o sentido de “atividade intelectual” quanto, por erro de leitura ou de desconhecimento de paronímias, para o sentido de louvação, “exaltação,” excitação provocada pelo efeito do álcool (AURÉLIO). Este uso intencional do poeta pela vizinhança fônica de palavras, pelo pun, o nonsense, ganha uma dimensão considerável na economia de sua práxis poética.
No terceiro e último exemplo, “a casa: lar””, outro poemito de título bastante sugestivo, outra vez o “eu lírico” joga com o duplo sentido, recorrendo à atomização ou “desintegração” (BOSI, Alfredo, op. cit. p.477)) vocabular (traço verbos visuais, entre outros, trazidos pelo Concretismo de 56 e pelas vanguardas vindas do exterior) comportando dois sentidos. No primeiro, o sintagma nominal “a casa: lar” configura um tônus de humor, de vez que o lexema “casa”, é muito corrente se empregado como equivalente de “lar”. É um título engraçado e a um só tempo entrópico. No primeiro verso, se instaura um clima de erotismo e humor, principalmente quando, no primeiro verso, o lexema ”imóvel” traz á tona o sentido mercantilista de propriedade, de lugar de posse, de um dos pilares da sociedade capitalista, em oposição às socialistas, nas quais o imóvel, a propriedade privada, não existe, mas é bem do Estado. No segundo verso, “recanto doce recanto”, que de longe traz à baila a conhecida frase “lar, doce lar”, de procedência cultural inglesa, o “Home, sweet home, there is no place like home”, lugar que é um convite ao sossego e à intimidade, à vida privada ainda outra vez o poeta joga com o duplo sentido, quando se poderia associar “recanto” às suas possibilidades sígnicas, musicais e melódicas. O terceiro verso, retoma o aspecto de erotismo entremostrado no primeiro verso, no qual o corpo, imóvel, se torna movimentos horizontais da carne, unidos de corpo e alma, conforme o advérbio de modo justifica, até graficamente, a sua criação morfológica em desafio à gramaticalidade. (continua)