Os tubos
Por Miguel Carqueija Em: 03/01/2011, às 10H37
Senhoras e senhores, eis o transporte do futuro
(Miguel Carqueija)
Sete e quinze da manhã. Sonolento, Erasmo Monteverde serve-se de um lanche rápido no restaurante do tuboporto. Felizmente ali servem coalhada, algo de que ele sente necessidade em razão de seus problemas digestivos. A tensão e a angústia que os seus negócios trazem parecem ausentar-se temporariamente de seu espírito naquele ambiente, enquanto andorinhas voam lá fora, avistadas através da vidraça. A nível inconsciente, porém, Erasmo está preocupado, talvez mortalmente preocupado. O mergulho sempre o amedronta, apesar de repetido já dezenas de vezes.
Monteverde paga a despesa, recebe seu cheque-troco e, ao sair, subitamente sua tranquilidade como que se esfuma. Então, está chegando a hora! Ele observa outros passageiros que se dirigem ao tubo e, como sempre, não se interessa em entabular conversas, iniciar amizades pelo caminho. O medo é mais forte que tudo.
Monteverde caminha. Sua bagagem já está no bagageiro do tubo e consigo conserva apenas uma mochila. A poucos metros está a rampa de duralumínio. Ele sobe vagarosamente, e apresenta seu bilhete eletrônico na roleta. De lá atravessa a prancha até a entrada do tubo, onde uma garota de uniforme vermelho lhe dá as boas vindas. “Tenha uma boa viagem, senhor.” Monteverde grunhe qualquer coisa em resposta e procura pelo seu lugar. É a poltrona 36, no 3º andar do tubo. Ele desce pela escada rolante e encontra um terceiro andar ainda quase vazio.
A sensação de claustrofobia começa a se apoderar de Erasmo, enquanto os ponteiros do relógio de parede avançam inexoravelmente. Maldição, vamos atravessar o inferno de novo. Quantas vezes ainda, até me aposentar?
O suor começa a escorrer de sua testa, apesar do ar condicionado. O assento de Monteverde, confortável como os demais, fica ao lado da vidraça panorâmica. Não que isso seja interessante. Observar rocha, rocha e mais rocha iluminada vagamente pela fosforescência do tubo não lhe parece agradável.
Assim mesmo Erasmo mantém-se fitando a janela, observando o granito imóvel. Não quer nem pensar no que o aguarda em Tóquio. Já basta, por ora, o aborrecimento da passagem.
Aos poucos o vagão tubar vai se enchendo de gente. Um sujeito magriço e de óculos escuros senta ao lado de Monteverde e lhe dirige um "Olá, como vai?", ao qual Erasmo nem responde. Então o alto-falante vibra e uma voz feminina anuncia o início da travessia. "As condições são ótimas. Tenham uma boa viagem."
Erasmo apalpa no bolso de seu paletó o vidrinho com comprimidos de Enjonol. Teme a descida pelo imenso tubo que vara a Terra até o Japão, contornando o verdadeiro centro do planeta, que é um horror de altas temperaturas, metais pesados em fusão. Muitas e muitas vezes Erasmo sofreu horríveis pesadelos nos quais se viu mergulhado em magma fervente, tendo acordado suando em bicas. Nem assim tem coragem de tomar remédio para dormir: o medo de morrer dormindo é mais forte que a impossibilidade psicológica de relaxar. E se a larva fervente penetrar nas paredes do túnel? E se o vagão tubar sofrer um enguiço e faltar oxigênio? E se o isolamento térmico falhar? Monteverde treme, e ofega, e reza, e torce as mãos, enquanto o tubo vibra e sacode e desce pelo outro tubo, atravessando as camadas milenares das eras geológicas. Por vezes avistam-se fósseis, até de dinossauros, nas paredes rochosas.
— Não é emocionante, senhor? Eu sempre me emociono!
Monteverde sente que o sacripantas o pega pelo braço. Retira o braço e olha o outro com ferocidade:
— Por favor, me deixe em paz. Não o conheço e nem quero.
— Puxa, que mal-educado!
Erasmo vira o rosto para a janela. A idéia de dar um soco no importuno é tentadora, mas ele tem coisa mais importante para se preocupar. A rocha, a interminável rocha.
Sial. Sima. Litosfera. Centrosfera. Rocha viva. Rocha metamórfica. Águas subterrâneas. Sismos. Epicentros. A lembrança da existência de terremotos faz Erasmo suar frio. Há dez anos o vagão tubar Londres-Havana foi esmagado por um deslizamento da placa tectônica. Mais de trezentas pessoas mortas ou mutiladas. Há quem diga que a viagem de tubo, feita com a utilização de campos magnéticos, é muito mais segura que a viagem de avião ou de dirigível. E a companhia prefere o tubo. Monteverde xinga o diretor-presidente enquanto olha obcecado para as rochas, as rochas, as rochas... Elas parecem dizer: nós vamos emparedá-lo vivo. Você é um simples mortal, de carne e osso. Não pode lutar contra a nossa força. Se nós nos fecharmos sobre esta geringonça que nos atravessa, amassá-la-emos como papelão. E você, seu intruso, será reduzido a pó. Será triturado. Esmagado. Aniquilado.
Erasmo vai até o filtro, pega um pouco de água e toma um tranquilizante. Já está quase na hora do almoço e a música ambiente é um lindo tema de Debussy, mas ele não consegue pensar em nada agradável. Quando chega a hora, segue como um autômato.
Limita-se a comer um purê de batatas, um bife seco e uma salada de frutas. Não tem coragem de tomar um drinque: embora tome uísque moderadamente, nessa hora torna-se abstêmio. Medo de perder qualquer fração de consciência. Não bebe, não dorme. Permanece acordado e alerta, como se pudesse lutar a socos com a rocha, quando ela invadir o veículo.
Quando retorna ao seu assento percebe que o vizinho se foi, passando para uma poltrona sem ocupante. Melhor assim. Erasmo senta, mas logo em seguida levanta para ir ao banheiro. É o nervosismo. E agora ele tem que tomar o remédio contra enjôo.
Ao retornar, começa a incômoda manobra de viragem. Agora todos se prendem com os cintos de segurança, mas a gravidade artificial, utilizada só durante alguns instantes por causa do dispêndio de energia, está bem sincronizada. Tudo corre bem e Monteverde suspira de alívio.
Agora o teto do vagão avança a grande velocidade rumo à superfície terrestre, no Japão. São quase mil quilômetros por hora, uma velocidade incrível obtida com a energia da magnetosfera e das imensas antenas parabólicas espalhadas pelo mundo. É uma técnica maravilhosa, Erasmo tem de reconhecer. Por que então não relaxar e ler um pouco daquele romance policial, parar de pensar em desastre?
Erasmo tira de sua bagagem portátil — a que cabe no compartimento do braço da poltrona, não precisando ficar no bagageiro — um velho livro de bolso, policial. Abre na página em que deixara o marcador e mergulha na leitura.
Subitamente um reflexo avermelhado surge piscando nas páginas abertas. Erasmo olha para cima. Luzes vermelhas se acenderam e piscam. Uma voz soa pelo aposento:
— Apertem os cintos! Emergência! Não há motivo para pânico, fiquem em seus lugares!
Monteverde nada sabe sobre o tornado que está assolando o Japão e que, contrariamente ao que se esperava, perturbou o campo magnético de Tóquio. Sabe apenas que as luzes falham e reacendem, que o vagão sacoleja e vacila, que as pessoas se levantam, gritam, desmaiam e correm, inteiramente tomadas de pânico, de nada servindo as ambíguas palavras do funcionário do vagão. E agora é uma comissária de bordo, de aparência desesperada, que surge da escada e grita histérica:
— Estamos soltos! Não temos mais força magnética! Houve um colapso de energia! Estamos caindo!
Erasmo solta o livro e corre até o corredor. Quase todos fugiram para cima, onde o impacto da queda será menor. Mas que adianta? São milhares de quilômetros de queda até uma das curvas que contornam o centro da Terra. E já agora Erasmo, em estado de choque, sente o chão fugir de seus pés. É a queda livre, pelo tubo abaixo, em direção às rochas. As rochas! As rochas! As rochas! Elas conseguiram! Sem saber o que mais fazer, agarrando-se a um corrimão para não bater no teto, Erasmo grita. É o pânico integral, absoluto, esmagador, exorbitante. E grita, um grito selvagem e interminável, síntese de todos os medos ancestrais