OS SAPATOS  E   OS   SIGNOS(8)

CUNHA E SILVAFILHO

                                                                                   Para Cunha e Silva, meu pai (in memoriam)

 

            O recente episódio das sapatadas contra o presidente George Bush merece uma na alise mais profunda em face da relação que o incidente  tem com a semiologia que, para o caso, serve à elucidação  entre o  som, a palavra, os gestos e os signos representativos decorrentes  desse incidente que muito  tem a ver mais com um gran finale às avessas  de uma ópera-bufa.

             A cena e a coreografia ali avultam de forma histriônica. Não chega ao trágico. Ainda bem. Mas atinge as raias da pantomima. Essa é a nota lúgubre  e constrangedora de um homem que atingiu o cargo mais alto do governo e, ainda por cima, por dois sufrágios sucessivos. Fim trágico, incolor e melancólico de um  chefe de Estado que administrou seu país – o mais poderoso do planeta  -, e não soube manter-se com grandeza  na condição de primeiro  mandatário de uma  portentosa  nação.

           Não fez jus aos nomes de George Washington, Jefferson, Benjamin Franklin e outras figuras proeminentes de seu país. No exemplo norte-americano, presidentes houve que sofreram atentados, alguns mortais, como Lincoln e Kennedy. Estes, todavia, foram presidentes respeitados pelo seu povo, ainda que neles possamos fazer alguns reparos, como é o caso de Kennedy com respeito ao Vietnam.

           Finda o seu segundo mandato combalido, impopularíssimo e o máximo que  pode agora fazer é recolher-se ao silêncio dos  vencidos. Bush foi, talvez, o presidente norte-americano que mais concorreu para que o nome  da grande nação  americana sofresse os mais duros golpes de  execração por parte de algumas  nações árabes e de outros povos da Terra. O maior crime  de Bush foi invadir o Iraque até quase aos limites do genocídio.

           Todos recordamos das atrocidades cometidas pelos norte-americanos e aliados através dos bombardeios maciços aéreos atingindo em  cheio  um país já de si  assolado por tantos problemas intestinos de natureza político-religioso-ideológica. Os alvos das bombas e mísseis de alta potência tornaram-se, via satélite, cenas surreais, levando o conceito de morte a uma dimensão  de banalidade. Seus objetivos eram  alcançar apenas  quartéis, depósitos de armas e, é claro, militares iraquianos. Porém, a essa selvageria guerniquiana se somaram aquelas perdas de vida constituídas de crianças, jovens, adultos e velhos.

             O patrimônio arqueológico, artístico e histórico do Iraque foi também  alvo das explosões assassinas. O país, da noite para o dia,  virou uma terra arrasada, sem infraestrutura, entregue à própria sorte. As nações submissas à hegemonia norte-americana, sobretudo a Inglaterra, ainda mais contribuíram para a devastação de um país indefeso e se dizendo, através de um ditador-fanfarrão, pronto a enfrentar a guerra, cujo fim foi trágico e desesperador.

             Bush, com manu militari, agiu sozinho e redobrou sua ira ainda mais após o 11 de setembro. Suas ações ilícitas pouco se lixaram para os organismos internacionais, tendo  à frente a ONU. O motivo da invasão: nenhum que justificasse essa vil  ação sob o arrepio das leis universais da soberania dos povos. Pois, no Iraque, não havia armas nucleares, conforme especialistas afirmaram.  Só petróleo. Ora, era isso justamente a menina dos olhos do  arrogante Bush filho.

           Por isso, na última visita oficial ao Iraque, num pronunciamento  à  imprensa, ao lado do Primeiro Ministro iraquiano, a tragédia armada por ele se transmudou no mencionado incidente burlesco de que foi vítima solitária. Um jovem jornalista iraquiano, Muntardar al-Zeidi, inopinadamente, sem se importar com as  consequências   que poderiam  advir do seu ato, tendo em vista o  forte esquema de segurança do presidente,  tirou os sapatos e arremessou, um de cada vez, em direção ao ilustre visitante, ao mesmo tempo em que xingava o presidente de  “cachorro,” o que a imprensa  de língua inglesa ambiguamente chamou de “o último insulto.”

           A ação tragicômica deixou o presidente Bush em deplorável situação farsesca ao desviar-se dos sapatos lançados contra ele. A televisão, com os seus mil  recursos, multiplicou o incidente  em seqüências rápidas que mais pareciam  cenas de filme pastelão, ou espetáculo de circo mambembe, com palhaço e tudo para regozijo da garotada sedenta de patuscadas. Bush exibiu uma fisionomia entre o trágico  e o farsesco.  No seus olhos miúdos percebia-se visivelmente o tumulto que lhe ia n’alma constrangida e perplexa como uma criança pega em flagrante  por alguma  ação travessa. Sorriso alvar, que só lhe  fazia crescer o vexame de que  era vítima aos olhos do mundo.

            Os sapatos de Muntardar al-Zeidi simbolizam os ataques contra    Bagdá e outras regiões iraquianas, contra as violações e estupros de soldados  norte-americanos. O alvo do jornalista possivelmente era o rosto do presidente. O alvo é o cérebro,  o eixo das determinações.  A ousadia e a coragem do jovem jornalista eram uma resposta à invasão fatídica, irresponsável e desnecessária à soberania de um povo, à sua história, aos seus costumes e à sua cultura. O par de sapatos é o correlato da tirania pós-moderna contra fracos e  indefesos de nossos dias. Bush, finalmente, torna-se palco de uma comédia de erros. Não merece os aplausos do mundo,  mas a indiferença e o repúdio dos povos civilizados.