Os filósofos chamam o estado de cidade. A razão disso é simples: as cidades gregas, onde se iniciou o pensamento político, eram elas próprias estados. Eram cidades-estados. Então, cuidar da cidade era cuidar do estado. Cuidar da cidade era cuidar da polis, o nome dado pelos gregos às cidades. Essa tarefa de administrar a polis de modo a fazer todos viverem bem e serem felizes ficou conhecida como a política.
A cidade antiga tinha escravos e cidadãos livres. A cidade moderna não possui escravos, mas possui algo que também havia nas cidades antigas que trazia preocupação: os pobres.
Durante a Idade Média, ou seja, quando as cidades perderam importância e o mundo rural tinha mais habitantes que o mundo urbano, os pobres não eram preocupação, eram solução. Ao menos assim foi no Ocidente. Jesus havia falado que os ricos teriam dificuldade de entrar no Céu por conta de se apegarem às suas fortunas mais do que às regras dele próprio, e então os ricos resolveram isso com muita facilidade: passaram a dar esmolas. Ou davam diretamente para os pobres ou davam para a Igreja, de modo que esta deveria cuidar deles. Assim, se alguma criança não muito pobre perguntava para o seu pai “por que existem os pobres”, essa pergunta não causava nenhum constrangimento. O que era difícil responder no mundo antigo e o que é ainda hoje não é muito simples de explicar para as crianças, era facilmente respondido na Idade Média: os pobres existem para que os ricos possam fazer boas ações e irem também para o Céu, onde os pobres já tem cadeira cativa.
Com essa resposta os pobres podiam não amargar a vida com a pobreza e os ricos podiam muito bem se imaginar se safando do Inferno. Uma resposta assim não era cabível no mundo antigo clássico como não é boa em nosso mundo moderno. Além disso, tanto no mundo antigo quanto no mundo moderno, por conta de sua vida essencialmente urbana, os pobres não tinham e não tem a ver com a pergunta pela razão de sua existência, mas forçam-nos pensar em perguntas sobre “o que fazer com eles?”. Pobres demais criam na cidade problemas de toda ordem: a mendicância aumenta e os saques se tornam uma ameaça quando o emprego diminui. Mesmo em tempos regulares, qualquer oscilação no nível de emprego se relaciona com aumento e diminuição da violência urbana, do banditismo. Além disso, a pobreza amplia as áreas de cortiços e favelas, favorecendo o comércio de coisas ilegais – nos nossos dias, principalmente a droga. Isso sem contar os problemas de urbanismo: a poluição de rios de modo mais rápido e a necessidade de aumento de impostos gerais para que a cidade mobilize algum aparato público de serviços para os que vivem em lugares onde a iniciativa privada pouco se interessa em oferecer serviços.
No mundo antigo algumas cidades adotaram estranhas políticas em relação aos pobres. Algumas cidades procuraram diversificar o comércio com outros lugares, de modo a dar emprego aos pobres. Ao mesmo tempo, fizeram guerras de conquistas, podendo então justificar a cobrança de impostos dos mais ricos para sustentar grandes exércitos que, por eles mesmos, eram fonte de emprego. Outras cidades tiveram ideias menos pacienciosas. Por exemplo, Siracusa, aquela que Platão visitou três vezes, fez uma política de “exportação” de pobres. Engaiolou-os e os vendeu como mão de obra (semi livre) para colônias gregas carentes de mão de obra.
No mundo moderno os pobres, ao menos no século XX, adquiriram uma importância jamais vista. Nem mesmo na Idade Média eles ficaram tão importantes. É que a democracia liberal se tornou o tipo de governo de boa parte do Ocidente e, nela, sendo os pobres ou os “remediados” uma quantidade não pequena de pessoas, a pobreza passou a ser cortejada pelos políticos. Os políticos se dividiram em esquerda e direita. A esquerda passou a defender os trabalhadores e, enfim, os pobres em geral. A direita passou a defender o status quo vigente, ou seja, a propor que quanto menos mudanças melhor, especialmente se essas mudanças implicassem em fazer o estado cobrar mais impostos em favor de redistribuição de renda. Tudo iria piorar se assim se fizesse. É mais ou menos assim que vivemos hoje, nesse embate.
Os políticos da esquerda batem na tecla que os pobres precisam de uma ajuda estatal de vez em quando, principalmente no começo de suas vidas individuais e no fim delas: necessitam de condições para estudar que sejam semelhantes àquelas que os ricos já possuem desde o nascimento, e devem ter uma previdência social para a velhice. A direita diz que se o estado cobra impostos de todos para prestar serviço aos pobres, esses serviços podem não ocorrer, pois os políticos tendem a levar o dinheiro embora por meio da corrupção. O estado sempre seria bom arrecadador, mas péssimo gastador. Além disso, mesmo que os serviços fossem oferecidos, não seriam oferecidos com a presteza possível que caracterizaria a iniciativa privada. E mais: ao ajudar os pobres, os educaria de maneira a cultivar neles a indolência, não a iniciativa.
Nesse debate aparecem os intelectuais das universidades e os jornalistas. Eles são os que comentam tudo isso e, não raro, em época de eleições eles se aproximam dos partidos políticos para oferecer serviços de todo tipo. Querem ser a voz dos partidos e dos políticos, direta ou indiretamente. Ouvimos esses intelectuais. Mas, em geral, todos eles têm lá seus pecados. Os da direita às vezes mostram que não possuem tanta raiva dos da esquerda quanto do grupo que os da esquerda defendem. Ou seja, deixam transparecer que possuem mais ódio dos pobres que dos que dizem estar do lado dos pobres. Intelectuais assim, não raro, ferem nossa sensibilidade liberal e/ou cristã. Mas os da esquerda às vezes mostram que não tem apreço pela nossa inteligência, pois chegam a prometer coisas que já prometeram várias vezes e, se cumpriram, o fizeram do jeito deles, não do nosso. Nem sempre o que cumpriram era o que nós realmente precisávamos. Não raro, nos manipulam com tais dubiedades entre o “o que foi possível fazer” e o que de fato queríamos.
Tudo isso é a política moderna. Mas há nisso tudo um componente psicológico que nos atinge duramente, e este talvez seja um dos problemas mais difíceis de resolver em nossas sociedades ocidentais modernas: a inveja e de sensação de injustiça entre grupos. Há um nível de inveja suportável em nossas sociedades, mas ele pode crescer mais do que esperamos quando os ricos e os pobres começam a ter entre si um fosso estranho, que implica em fazer cada lado se sentir acuado e um pouco frustrado.
Um fosso entre ricos e pobres não despertaria inveja se ricos e pobres não se encontrassem e não se vissem senão em situações adrede preparadas. Mas, em nossa sociedade cercada de tecnologia, ricos e pobres, se não se enxergam, ao menos possuem a TV como espelho que os mostra uns para os outros. Espelho distorcido, mas ainda assim, espelho. E havendo espelho, pode haver comparação e, então, também aspirações não realizadas e, por isso, frustração e inveja. Uma sociedade possui níveis de tolerância para com esses sentimentos.
Os pobres podem muito bem não encontrar jamais os ricos. Mas os pobres podem fazer uma ideia dos ricos por meio da TV, especialmente reportagens e novelas. E agora de modo mais direto e mais realista pela Internet. A questão então é a seguinte, do lado do pobre: por que aquela pessoa que não se aparece tão diferente de mim tem o que eu não posso ter? Essa pergunta pode incomodar pouco, mas há momentos em que ela pode incomodar muito e, pior, muita gente pobre. O mais engraçado é o que o rico também sente inveja e também se apresenta ressentido: “por que aquela pessoa que não tem etiqueta e estudo pode ocupar a mesma mesa que eu nas negociações de salários e mesmo em reuniões com o governo?”
Quando isso acontece, quando a grama do vizinho parece mais verde e isso se torna uma “doença dos olhos” de todos em relação a todos, os laços de solidariedade necessários em uma sociedade, em uma cidade, ficam abalados. A sociedade começa a não funcionar direito.
A direita política ou, melhor dizendo, seus intelectuais propagandistas, tem uma enorme dificuldade de perceber isso, de levar a sério esse fenômeno. Ela prefere acreditar que só pobre e só gente de esquerda é ressentida. Ela não vê que a inveja e o ressentimento também brotam do lado dos ricos, e isso fica mais forte quando por questões de conjuntura o governo está nas mãos da esquerda. Ela não vê como algo explosivo. A esquerda também não entende esse fenômeno, porque para ela a distância entre ricos e pobres é algo que dói no bolso, não no coração. A esquerda despreza os elementos psicológicos dessa relação e, por isso mesmo, perde as rédeas de seus próprios comandados. Não raro, os pobres resolvem votar em alguém isolado, sem base partidária, que se apresenta como um vingador, alguém que diz que irá prender “os que ganham muito”. Essas figuras vingadoras são um perigo para a democracia liberal. Em algumas épocas elas aparecem desgarradas da esquerda e em outras da direita. Elas se aproveitam daquilo que os gregos diziam que era uma figura horrenda, que era descarnada e vomitava um líquido verde, fazendo adoecer os olhos das pessoas, que então ficavam obcecadas pelo que o outro tinha e elas pareciam não ter: a Inveja. É com a inveja que os vingadores e falsos heróis da política jogam para poder arrebanhar os pobres a seu favor.
Vivendo na cidade, sempre que temos de pensar algo em política, deveríamos a aprender a pensar algo também da psicologia dos que vivem na cidade sob a política. Inclusive deveríamos saber refletir sob nossa vida nisso tudo, sobre o nosso grau de inveja e frustração.