Cunha e Silva Filho


                      Depois de ler uma carta que me enviaram pela Internet escrita pela Thereza Collor e endereçada a Renan Calheiros, sinto calafrios, não de medo, mas de vergonha de ter um titulo de eleitor e ter que, em data de eleição, ser obrigado a votar. É muita infâmia, sujeira moral, falta de pudor, de formação ético-religiosa, de estudo e preparo para a vida pública, o que relata a bela Thereza, que carrega um sobrenome maldito nas costas. Fosse ela, retiraria tal sobrenome. Não é digno de sua beleza e de sua sensibilidade e elegância não só física, mas também ética. O que essa senhora, viúva do irmão do caçador de marajás, nos relata da trajetória desse Renan Calheiros é de causar horror a qualquer vivente.
                  Não concebo a atual vida política nacional senão recorrendo a uma figura de retórica, no caso, a  metonímia. O país, desde a sua fundação, nunca deu bom exemplo de lisura e honestidade palaciana, com poucos intervalos históricos.
                  Ou seja, em nossas plagas, a parte nunca funcionou tanto como a metáfora do todo num movimento dinâmico e constante de reversibilidade que remonta à chegada de Dom João VI, cujo retrato mais fiel busco, não na História nacional, mas na ficção, precisamente na ficção de Manuel Antonio de Almeida(1831-1861), com as suas Memórias de um sargento de milícias, publicadas em dois volumes em 1854-55. O romanace de  Antônio de Almeida, primeira ficção malandra que formaria uma tradição nesse gênero,  prenuncia, de certa maneira,  algumas práticas sociais da imagem perfeita da dissolução da ordem e da segurança das instituições públicas de uma nação  que  da Colônia surgiria com seus defeitos e virtudes, ou mehor, mais defeitos crônicos  do que virtudes. O ponto ideal que traduz a realidade do poder é aquela passagem  na qual  o narrador, capítulo 8, chamado “O Pátio dos Bichos,” com tintas de deboche, descreve o espaço do paço imperial, então chamado palácio del-rei. Esse espaço compreendia uma “saleta ou quarto,”que, na época joanina, servia para alojar três ou quatro oficiais superiores, chamados pelo narrador de “velhos” que não passavam, de resto, de “sessenta” anos. A caricatura que lhes faz o narrador dá uma idéia perfeita e acabada do que o subtexto fornece ao leitor.  (Cf. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Rio de Janeiro: Ediouro, Biografia e introdução de Afrânio Coutinho, s/d, ). 

             Vejamos mais de perto, transcrevendo os trechinhos seguintes: a) “... oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis na paz...”; 2) “... o tempo todo passavam em santo ´ócio, ora mudos e silenciosos...”; 3)”Às vezes, acontecia de adormecerem todos ao mesmo tempo...”(op. cit., p.26-27) O povo, os próprios oficiais e os soldados de guarda do palácio, todos, enfim, que assistiam àquela costumeira cena modorrenta e farsesca, somavam-se às risadas dos populares.  O mais ridículo era que, pilhados no ronco em conjunto, num ressoar em coro, eram acordados de repente por um gaiato que lhes pregava uma peça, lhes dizendo que el-rei os chamava com urgência. Os patetas, dando ouvido ao “gaiato”, lá iam à presença de el-rei que, percebendo a patuscada, explodia em risos...
             Em várias passagens deste divertido romance, não é difícil pinçar passagens e situações hilariantes que não deixam de ser  ainda atuais em muitos aspectos da nossa querida República.
           Não foi por menos que Antonio Candido formulou o conceito de “ordem e desordem” da reversibilidade do comportamento de nossa vida social. E  vejam que a sua visada interpretativa da sociedade brasileira  já partia da ficção ambientada no Brasil Colônia. 
           Os últimos acontecimentos da política brasileira têm demonstrado que vivemos dias carnavalizados. Para onde olhamos, nada vemos que nos dê algum ânimo de melhoria de nossas instituições representativas, sobretudo no Congresso e no Senado Federai. O país perdeu sua identidade política na esfera moral. Nossos representantes, com raras exceções, não se pejam em exibir um comportamento que fere a dignidade da alma brasileira. Suas ações políticas visam, não aos interesses coletivos, mas a regalias pessoais. Não só regalias, mas ações pautadas na ilegalidade, no desempenho do mandato pela prática contumaz, pelo dolo, pela prevaricação, pelo conchavo, pelos golpes baixos do tráfico de influência, de apadrinhamento, da antiga e malsinada prática do “favor”, do nepotismo, das indicações feitas na base do interesse eleitoreiro, de captação do voto pela urdidura de natureza demagógica ou messiânica. 
         Nossos representantes na Câmara e no Senado não estão dando bom exemplo ao povo brasileiro, que é o de tornar a nossa vida melhor e mais justa. Uma vez eleitos, agem, em Brasília, como se fossem representantes deles mesmos e de grupos de má liderança. Colocam o interesse do mandato acima do interesse e do bem-estar do povo.
        No caso mais recente da CPI contra supostas ações partidas da presidência do Senado, houve muito barulho, mas, ao final, nada de concreto se fez para punir culpados e cúmplices, porque ninguém se torna imune de culpabilidade se não conta com o apoio de seus pares. Toda essa bulha criada até parece que não passou de encenação de bastidores, porquanto, no final, quem sai vitorioso é a força do poder, não das ideias, não dos argumentos justos, não da legalidade, não da Constituição e da força do Direito. 
      O desenlace fica sempre ao lado do indigitado. Lembra uma comédia shakesperiana na qual “Tudo fica bem quando termina bem.” E terminar bem significa que as esperanças e expectativas do povo brasileiro, mais uma vez, capitularam diante das pressões do poder.
    O empedernido  Catilina, segundo lembrou bem Frei Beto em recente e magnífico artigo, em forma de parábola,  na Folha de São Paulo, mais uma vez venceu no Senado Romano. Venceu também a polaridade reversível e persistente.