O que é o sujeito
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 24/05/2011, às 19H17
{Paulo Guiraldelli Jr.]
O que é sujeito moderno
A noção de sujeito moderno indica “aquele que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Até o último quarto do século XIX, a auto-imagem que tínhamos era a de que nós – os bípedes sem penas – poderíamos nos tornar sujeitos, por algum meio ou, melhor dizendo, por dois meios: ou mudando o indivíduo pela educação ou alterando a sociedade por reformas ou revoluções.
A base para sermos sujeitos vinha da idéia de que éramos, por assim dizer, “animados” (de anima) e/ou “inteligentes”. Víamo-nos como seres possuidores de almas ou mentes, que eram instâncias unitárias. As tais unidades eram mais ou menos internamente homogêneas e capazes de uma transparência para si mesmas. Nosso confronto conosco mesmo, não raro, era explicado pela luta entre a “paixão” e a “razão”. A primeira, mais atribuída ao corpo ou ligações com este; a segunda, articulada ao pensamento, ao imaterial e, se por acaso alguém viesse a dizer que também esta parte tinha algum vínculo com o corpo, então o corpo seria representado pelo cérebro, a “parte alta” – superior – do corpo. Nossa dificuldade de falar de nossos “conflitos internos” poderia ser facilmente resolvida pelos literatos, pelos escritores e poetas. Forças antagônicas com nomes de deuses e envolvidas em mitologias de todo o tipo poderiam descrever bem o que ocorria quando agíamos de maneira estranha ou de modo problemático.
Todavia, o século XIX foi deixando de lado a literatura e a filosofia ao falar de almas e mentes. Começamos a inventar a psicologia – uma nova fábrica de auto-imagens. A própria filosofia foi preparando uma nova imagem dos indivíduos humanos, para dar de bandeja tal produto aos novos teóricos da fotografia dos bípedes sem penas – os psicanalistas. Os filósofos alemães Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) começaram a colocar alguns detalhes a mais nos modelos de almas ou mentes, tornando-os então bem mais complexos do que o foi conseguido com racionalistas e empiristas dos séculos XVII e XVIII. Sigmund Freud (1856-1939) coroou esse caminho. Com ele, definitivamente deixamos de lado a imagem de “eu” segundo o modelo do pensamento moderno.
A psicanálise, com Freud à frente, disse que o “eu” – ou mesmo o “sujeito”, conforme o caso – “não era senhor em sua própria casa”. O “ego” não teria poder de decisão autônoma, mesmo em seu lar, ou seja, no campo mental. Conviveriam com o “ego” outras instâncias, cujas forças terminariam por dar a última palavra em boa parte das decisões e atos humanos. Não se tratava mais de nos vermos, quando de nossos estados vigentes de conflitos conosco mesmos, sob a luta “razão versus paixão”. Nem era mais o caso de falarmos somente em conflitos. O “eu” havia sido recriado de modo a ter compartimentos, perdendo sua homogeneidade. O indivíduo autônomo ou o sujeito deixaram de ter uma unidade não problemática. A auto-transparência do “eu” foi revogada.
Nós, os homens e mulheres do século XX, não paramos muito para pensar se Freud estava ou não correto. Ou melhor, até fizemos isso, mas tal avaliação não determinou nossas escolhas teóricas. Quando abrimos os olhos, já estávamos todos falando como Freud nos ensinou. Incorporamos ao nosso vocabulário uma série de palavras da psicanálise. Colocamos em nossa linguagem, mesmo a mais comum, as teorias que nos levaram a uma imagem bem mais complexa de nós mesmos do que aquela produzida na modernidade. Transformamo-nos em bípedes sem penas que continuaram a se achar capazes de “ter consciência de pensamento e responsabilidade dos atos”, mas que também estariam ligados a “forças internas” de várias ordens. E essas forças poderiam ficar sem controle, se é que tinham algum, e elas então comandariam os comportamentos. As tais forças poderiam ser mapeadas cientificamente.
Assim, hoje, qualquer pessoa mais ou menos escolarizada fala em “desejos inconscientes”, “decisões tomadas pelo inconsciente” e, não raro, remete isso a alguma coisa que se estabeleceu a partir de Freud. Ao dizermos isso, não nos referimos a nós mesmos como pessoas que, por falarem e agirem “sem consciência” e “sem responsabilidade”, seriam seres doentes mentalmente, estariam “fora da razão”. Usamos tal imagem de nós mesmos como o que espelha os que são sadios mentalmente. Até mesmo os que jamais acreditaram na terapia psicanalítica usam tal vocabulário, digamos, freudiano. A vitória popular de Freud na montagem de nossa auto-imagem atual é incontestável.
É claro que alguns ainda apimentaram mais tudo isso com um pouco de Marx – começaram a dizer que não só “forças internas” poderiam ser responsáveis pela ação do sujeito, mas também “forças externas” assimiladas ao aparato “interno”. Tais forças viriam da “ideologia”, algo como que uma “falsa consciência” produzida por mecanismos sociais. Genericamente, e não raro de forma pouco rigorosa, essas pessoas abocanharam alguns preceitos do marxismo popular, e então adotaram a idéia de que não só o id e o superego se oporiam ao ego, mas que haveria aí um quarto componente mental, às vezes imiscuído nessas instâncias, na “caixa mental”, às vezes separado delas, que era a tal “falsa consciência”. Era algo como um tipo de véu, que tornava o indivíduo incapaz de agir da melhor forma. Resultado: o indivíduo humano teria ainda mais complicações para agir como sujeito, isto é, como alguém “consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos”, pois uma vez consciente, mas com a consciência deturpada, poderia muito bem decidir segundo não o que seriam seus próprios interesses racionais – os de sua classe – mas segundo interesses contrários ao seus, ou melhor, aos de sua classe. Esse marxismo lambuzado de freudismo deu regras para muitas conversas e refez com pinceladas fortes a figura humana.
Muitos de nós, principalmente os escolarizados, passamos a nos ver segundo este modelo em meados do século XX. Mas isso não ocorreu sem oposição. Certos movimentos oposicionistas se fizeram em um nível altamente teórico. Em geral, geraram apenas dissidências na psicanálise. Todavia, em um determinado momento do século XX, houve uma crítica que, se tivesse vencido, teria nos feito procurar outra auto-imagem. E talvez nossa história atual fosse outra. Paradoxalmente, o filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980) foi o autor de tal crítica (digo paradoxalmente por uma razão simples: em determinado momento de sua vida, Sartre abandonou o existencialismo como doutrina independente e voltou a reafirmar o marxismo).
Sartre fez uma reclamação célebre contra a psicanálise. Ele não se conformava com uma teoria sobre nossa psiche que poderia desresponsabilizar as pessoas de seus atos. O existencialismo, o nome dado à corrente filosófica de Sartre, era justamente aquela “filosofia da ação” que dizia que todos eram livres para escolher seu destino, e que o problema era o de assumir ou não as responsabilidades das escolhas. Aliás, ficou famoso o fato de Sartre alertar todos que os nazistas não poderiam se desculpar dizendo que fizeram o que fizeram porque seguiram ordens. Ninguém poderia jogar a culpa de seus atos em outros, e então, muito menos, no seu inconsciente. A psicanálise, na conta de Sartre, estaria dando margem para tal, uma vez que Freud havia dito do “eu” ou do “sujeito” que ele “não era senhor em sua própria casa”. O “ego” não teria poder de decisão autônoma, mesmo em sua casa, ou seja, no campo mental. Conviveriam com o “ego” outras instâncias, cujas forças terminariam por dar a última palavra em boa parte das decisões e atos. Sartre acreditava que tal teoria iria favorecer apenas os de má-fé e os covardes.
Sartre foi francamente derrotado na sua crítica contra Freud. Mas não porque a psicanálise encontrou boas respostas para ele, e sim porque a psicanálise ganhou o público e a questão de Sartre caiu, em parte, no esquecimento.
Apareceram respostas, no entanto, em defesa de Freud. Ou melhor, apareceram teóricos tentando adaptar o existencialismo à psicanálise. Isso não vem ao caso. O interessante é notar como é que a teoria vencedora teria se saído bem de qualquer maneira, se quisesse disputar no terreno puramente intelectual.
A melhor defesa da teoria freudiana, quanto a este aspecto, veio da filosofia, e não da própria psicanálise. E ela é recente. Seu autor foi o filósofo estadunidense Donald Davidson (1917-2003). Sua defesa pode não ter resolvido uma série de problemas técnicos, que deveriam ser acertados nos detalhes da teoria. Todavia, naquilo que a teoria possuía de geral, e que serviu para que pudéssemos formar uma nova auto-imagem de nós mesmos, Davidson conseguiu produzir uma explicação bastante aceitável, capaz de nos tranqüilizar: podemos ainda ficar com a auto-imagem que Freud nos deu. Ela parece nos servir, por enquanto.A solução que Davidson nos legou é de 1974, em um artigo com o título “ Paradoxos da Irracionalidade”, e que temos em um livro seu com o título Problems of rationality (Oxford, 2004). Mas ainda que tenha sido Davidson o criador de uma solução para o “problema de Sartre contra Freud”, não foi ele quem usou de tal solução para problemas práticos. As modificações para o uso de tal solução no cotidiano e a popularização dessa solução veio por meio de outro filósofo estadunidense, Richard Rorty, que emprestou alguns instrumentos de mais um americano, Daniel Dennett.
É certo que o problema que a filosofia enfrentou era mais amplo que o deixado por Sartre. Ela teve de se ver com vários dos ataques sofridos pela noção cartesiana de “eu” e de sujeito. Não é o caso, aqui, de lembrar tais questões que estão ligadas mais à própria filosofia e seus afazeres técnicos internos. Todavia, no trabalho que teve para resolver seus problemas, enfrentou um que terminou por desembocar no que seria a questão de Sartre. O problema posto por Sartre contra Freud nada mais era que o de identidade. Afinal, sendo ou não o “eu” senhor em sua própria casa, quando batessem à porta de sua casa, quem abriria a porta, quem se responsabilizaria pela casa? Mais exatamente: qual o nome que é fixado no endereço para o qual o carteiro entrega as correspondências?
Richard Rorty começou o trabalho de ler Davidson e elaborar uma noção de “eu” menos afeita a ataques; uma noção mais condizente com o que a ciência contemporânea tem apontado como sendo possível de ser o nosso retrato atual. Como Davidson, ele passou a falar não mais em “eu”, mas continuou usando às vezes o termo “identidade” e, principalmente, “rede de crenças e desejos”. Como Davidson, ele deixou de usar “sujeito”, utilizando-se da palavra “agente” e/ou “falante”.
A idéia básica foi a de dizer que somos “agentes” e/ou “falantes”, e que essas nossas atividades de agir, linguisticamente ou não, depende de nossas “redes de crenças e desejos”. Essas redes de crenças e desejos não são o que temos. Elas são o que somos. Como os outros e nós mesmos ficamos sabendo o que dizem tais “redes de crenças e desejos”? Através das várias narrativas que mostram o que pensamos, dizemos, fazemos, etc. Os chamados “conflitos interiores”, então, podem ser vistos como oposições entre uma parte do tecido da rede, que é um grupo de narrativas, e outras partes do tecido, que são outros grupos de narrativas. Assim, não há qualquer descontinuidade nesse tecido. Ao longo de uma vida, podemos ver que há um grupo de narrativas que forma um conjunto mais coerente que outros grupos. Este conjunto poderia ser aquele a quem atribuiríamos a “identidade moral” do indivíduo em questão. O endereço do carteiro.
Um dos melhores exemplos sobre o assunto foi dado, involuntariamente, pelo filósofo e crítico de arte estadunidense Arthur Danto. Ele não disse o que disse no sentido de exemplificar o trabalho de Davidson ou Rorty, mas o que fez se tornou um exemplo perfeito de como que é possível, usando a filosofia analítica e o pragmatismo atuais, colocar de lado as objeções de Sartre a Freud.
Danto investiga o nu na produção artística em confronto com os sentimentos de vergonha e orgulho. Sua questão vai da estética para a ética. O que ele quer saber é como que podemos tratar o “direito do indivíduo sobre o modo que ele aparece em cena pública”. Sua preocupação é sobre o que chama de “o espelho”. Como o bípede sem penas se vê. Ou seja: qual o “espelho” que fornece, para o “alguém” que procura o psicólogo ou o sociólogo (ou é procurado por eles) ou que está sob as diretrizes do pedagogo, as melhores imagens desse “alguém”? Ao discutir a “ética de degradação estética”, ele mostra duas situações com fotos de Candy Darling, feitas pelos célebres fotógrafos Richard Avedon e Peter Hujar. Suas considerações tomam a análise dessas duas fotos – os “espelhos” de Candy Darling, dados a ela por Avedon e Hujar. Candy Darling sonhou em saltar da condição de travesti para a condição de uma atriz – Lana Turner ou Kim Novak estavam em seu horizonte, quando jovem. Candy, de fato, se tornou atriz. Ela foi uma figura marcante de Wandy Warhol. No filme “Flesh”, de 1968, ela apareceu com longos cabelos loiros, em poses que buscaram mostrar mais feminilidade do que qualquer outra coisa. É assim que ela queria ser vista – como mulher. Danto relata detalhes biográficos para afirmar tal intenção da modela e atriz, se é que já não bastava, no caso de uma modelo-atriz, a coleções de fotos das quais ela participou profissionalmente ou mesmo em situação semi-profissional. Danto tenta encontrar o imã que faria a apreensão do que seria a mais desejada identidade de Candy Darling.
Mas no caso das fotos, Danto achou o ponto que mostra o que é poder descrever bem um “self”, sendo justo, e o que é descrevê-lo e faltar com a regra da justiça. Uma das fotos, a de Peter Hujar, chamada simplesmente de “Candy Darling in her deathbed” (1973) [foto 1] (de fato, Candy morreu de câncer naquele ano), a mostra na cama, em uma típica pose de atriz bela de “filme noir”. É uma foto onde a cena foi adrede preparada pelo fotógrafo, inclusive com acréscimos de detalhes e, segundo a visão de Danto, trata-se de uma foto que respeita o que seria o desejo da modelo-atriz (ainda que seja uma foto da morte, realista, como o título mostra!). A foto de Richard Avedon é, talvez, mais conhecida. Trata-se de “Andy Warhol and Members of the Factory” (1968) [foto 2]. A foto mostra Warhol junto com homens e mulheres nus, exceto uma mulher e o próprio Warhol. Os homens estão separados das mulheres. Candy Darling aparece com cabelos longos, como no famoso quadro da “Venus” de Botticelli, portanto, bastante feminina, mas com o pênis à mostra. O pênis quebra toda a pretensão de Candy Darling de não ser “mais um travesti”. Danto avalia que o que colocou Candy Darling na foto foi um ato indutivo do fotógrafo. Ela não poderia ficar de fora de uma foto que iria se tornar célebre, com certeza. Seria difícil, para alguém que amava estar em revistas de cinema, não se deixar fotografar naquela hora, junto com o famoso Warhol. O que Danto diz é que por razão daquela oportunidade (glamour, moda, cinema etc), Candy Darling “traiu sua verdadeira identidade”. Para Danto, Avedon foi agressivo, porque ele não só desconsiderou os valores de Candy Darling, mas ele, de certa maneira, a fez cair rendida diante de valores que não eram os dela, valores que não constavam das narrativas que poderiam ser chamadas de “a sua biografia”. Foi um ato cruel, na avaliação de Danto.
Quem faz alguém se render aos valores que não são os seus é o verdadeiro não-ético, não é? Afinal, não é assim que se porta o demônio ou o libertino? O que Danto diz pode ser colocado segundo o jargão neopragmatista: Avedon desconsiderou o centro de gravidade de narrativas que poderia ser chamado, honrosamente para ela própria, pelo nome de “Candy Darling”, enquanto que Hujar nos deu um espelho que é o melhor e mais justo outdoor do centro de gravidade das narrativas de Candy Darling e sobre Candy Darling.
O psicólogo ou o sociólogo ou pedagogo capaz de trabalhar antes como Hujar que como Avendon, daria para Candy o que ela queria ser – A “Venus” de Botticelli (que, aliás, foi um quadro que, transformado segundo a praxe de Warhol, se tornou uma de suas bem conhecidas obras – duvido que Candy Darling não tenha se identificado!). A “rede de crenças e desejos” que Candy Darling queria que fosse chamada de “Candy Darling” tinha seu centro de gravidade no espelho de Hujar, e não no de Avedon. Hujar foi, digamos assim, o seu psicólogo e sociólogo neopragmatista mais justo. Seu pedagogo mais sábio. Se tivesse sido seu terapeuta, teria sido o mais incisivo e compreensivo. Se tivesse sido seu herói de militância moral e social, teria sido seu político mais útil. Se tivesse sido seu “Rousseau”, teria escrito seu mais perspicaz Emílio.
O exemplo mostra bem como que é possível colocar em segundo plano ou mesmo abandonar a noção moderna de sujeito e, ao mesmo tempo, mantermos a noção de identidade, de modo a continuarmos a ser aquilo para o qual apontamos em nossos espelhos. Preservamos a noção de identidade, e com ela as noções de “eu” como aquele que pode, sim, ter responsabilidades. Deixamos Sartre para o passado, podemos conviver com Freud, sem mexermos muito no quadro que a filosofia e a ciência traçam para o bípede sem penas atualmente