[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Para Patrícia Garcia e Pedro Faria

É bem triste quando amizades se rompem. Não raro, ficamos magoados e teimamos em não compreender o ocorrido. Em geral falamos de “traição” ou, no mínimo, “desconsideração”. Todavia, nossa incompreensão vem não de um simples engano inicial, mas de um auto engano. Pois relutamos em investigar como estamos entendendo a amizade e como que a amizade, um tanto independentemente de nós, se estabelece. 

O que nos faz não entender a amizade é nossa modernidade. Achamos que somos indivíduos que se colocam como sujeitos, e que então, a partir daí, forjamos relações, que são os tais campos intersubjetivos, e então nasce daí a amizade. Esse é o nosso pensamento sobre várias de nossas relações, especialmente a amizade. Deveríamos chamar isso de coleguismo, não de amizade. Pois a noção de amizade pela qual sofremos quando rompida, não é moderna, é antiga. Nosso olhar é moderno demais para ela. Não a vemos, não a compreendemos.

A amizade não nasce de um campo do qual compartilhamos. Esse é o erro. A amizade é um campo no qual com-vivemos. Não repartimos na amizade gostos, dizeres e ideias. Não somos a vaca comendo do mesmo pasto da outra vaca, isso não é amizade, é apenas compartilhar pasto. Ora, compartilhar não tem a ver com amizade. Amizade é do espaço do com-viver. O espaço de com-vida é que nos gera como o que somos, ou seja, amigos. A amizade é posterior e concomitante ao convívio, ao com-vívio. Não estou falando de morar juntos. Não estou falando de espaço dos anatomistas e geômetras, estou falando do espaço em um sentido surrealista. O espaço que é produzido e que produz o com-viver, que é o éter da amizade, ou ela própria. É o espaço no qual a experiência de um é a experiência de outro de um modo que um elo de mistério e de compreensão mútua se faz presente, e que nos dá a ver ali um campo mágico, místico. É de amigos poder dizer “eu sei o que você está sentido” sem precisar dizer, aliás, nunca dizendo. Desnecessário dizer. Ou melhor: sem sentido dizer. Pois o com-viver dá o tom para o com-sentimento.

Quando digo “nossa, eu esperava um comportamento X dele, pois era meu amigo”. A amizade não se rompeu aí. Ela nunca existiu. Foi um autoengano. Havia coleguismo gerado pela intersubjetividade. Mas, no campo antigo, a subjetividade não se põe e a intersubjetividade menos ainda. E sendo a amizade algo desse mundo antigo, ela ainda se estabelece assim, onde pode se estabelecer, sem ser o mero coleguismo. Ela está no com-viver e na experiência que quando um passa também o amigo passa em igual medida, igual intensidade. Não à toa Aristóteles disse que “o amigo é um outro eu”. Pois é um eu, e sendo um eu pode ter a experiência que eu tive. Tanto a tem que sabe como é, e por isso é meu amigo. Não precisa nenhum esforço para se colocar no meu lugar, pois o com-viver já o põe no meu lugar, desde sempre. 

Às vezes conversamos uma noite toda com uma pessoa. Trocamos experiências, ideais, projetos. Mas é coleguismo. Talvez casamento. Mas pode muito bem não ser amizade, pois o com-viver que faz “o amigo ser um outro eu”, portanto um eu como eu, não se estabeleceu. Aliás, o com-viver não demanda uma convivência no mesmo espaço e nem a frequência de encontros.

Essa noção de amizade, talvez a única noção de amizade que seja mesmo uma noção válida de amizade, nós tendemos a não percebe-la, porque ela não se faz no campo, conceituado modernamente, da intersubjetividade. Ela se estabelece sem qualquer relação de sujeito. Não cabe um eu relacionar-se com um eu, nesse caso, pois um “outro eu” é um eu e, então, está sempre no mesmo con-viver. É por isso que a amizade cobra por lealdade, que, aliás, não precisa ser cobrada. 

Paulo Ghiraldelli 58, filósofo

 

PS: mais do que nunca esse é um texto que não pode ser lido por quem saca frases. Tem que ser entendido no todo, coisa difícil hoje em dia, pois o número de energúmenos que só entendem frases aumentou assustadoramente.