O que Clarice Lispector pode nos ensinar sobre escrever em tempos digitais?
Por Denise Veras Em: 25/09/2025, às 12H20

Clarice Lispector não viveu a febre do digital, nunca soube o que é um feed interminável, jamais se distraiu com a avalanche de vídeos que se repetem em looping, tampouco teve a obrigação de parecer interessante em quinze segundos. Ainda assim, sua obra parece ter pressentido esse cansaço que hoje nos atravessa. Havia nela uma desconfiança do excesso, uma certa recusa à pressa, como se já soubesse que quanto mais corremos, menos chegamos. Suas páginas eram construídas com pausas que se arrastam, com respirações aflitas e silêncios pesados. Em um mundo onde tudo precisa ser rápido e consumível, ela nos lembra que a palavra só floresce quando tem tempo de hesitar. Em dias atravancados por mídias, escrever devagar é um ato de desobediência.
O texto clariciano sempre foi risco, mergulho sem boia, poque se perder também é caminho. Nós, autores contemporâneos, empurrados pelas cobranças rondantes, arriscamos cair na esparrela de escrever domesticados pelo algoritmo, seduzidos por curtidas que brilham como miçangas baratas. As palavras são entregues para agradar a um mecanismo invisível cuja recompensa é tão etérea quando intangível. Aplausos travestidos de curtidas completamente esvaziados de experiência. Lispector teria se aborrecido com esse espetáculo, porque sabia que a literatura não é feita para cicatrizar, ela existe sim para deixar feridas abertas. O texto que sobrevive não é o que arranca likes, mas o que incomoda, o que arde e não nos deixa dormir em paz.
Há ainda o fragmento. Nas narrativas dessa prosadora, as frases são arremessadas como estilhaços, são parágrafos que não se concluem, pensamentos que se quebram de repente. Antes das redes sociais de poucos caracteres surgirem, ela já intuía que o peso do mundo pode ser dito na leveza de um pássaro. As reflexões que espalhou em suas páginas são pedras lançadas no lago da alma do leitor, reverberando em círculos infinitos. Hoje, ao acessar microtextos que desaparecem em vinte e quatro horas, Lispector ressurge em minha memória e lembro que simples não é sinônimo de simplório. Um caco de vidro pode perfurar tão fundo quanto a lâmina de um punhal.
Do muito que aprendi com essa figura singular, uma das mais preciosas lições foi a coragem de ousar. A ucraniana mais brasileira do mundo não tinha medo de ser enigma. Tal qual a esfinge, ela exige ser decifrada, sob pena de devorar o leitor. Conta como quem omite, expõe como quem guarda. Seu gosto pela não obviedade me conquistou, e me encanta estar perdida entre suas sentenças por vezes incompreensíveis.
Na era da espetacularização, em que tudo é conteúdo e todos merecem o palco, pode ser desafiador deixar o expectador perdido. É preciso que o apresentado seja fácil de absorver, palatável, transparente. A esfinge das letras escrevia no sentido oposto: ao não explicar ela convida a audiência a pensar, e o silêncio de suas personagens faz barulho em nossa mente. Para revolucionar nem sempre é preciso longas teorias. A paixão segundo G.H. me ensinou que até mesmo a banalidade pode ser abismo. Eu diria ao meu leitor que ainda não se debruçou sobre os escritos dessa mulher sem concessões, que dê uma chance às pensonagens metafísicas dela. Seus rostos não têm maquiagem e seus corações são selvagens.
Escrever não é performar. Em Clarice a escrita ultrapassa o conteúdo, ela é. Para além de mercadoria ou produto, escrever é respirar, é o gesto de resistir ao silêncio. Talvez este seja o conselho mais urgente que ela poderia oferecer aos prosadores de hoje: escreva como quem respira, não para sobreviver ao algoritmo, mas para evitar sufocar diante da própria existência.