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Rosidelma Fraga
 
 
Meu silêncio seja
Meu poema, irmãos,
Junto ao vosso canto,
boca coletiva,
seja meu silêncio...
(Pedro Casaldáliga).
 
Este brevíssimo texto propõe-se a examinar a soma de identidades poéticas na poesia de Pedro Casaldáliga, tomando como ponto axial a Antologia Versos adversos, prefaciada pelo crítico Alfredo Bosi e editada pela “Fundação Perseu Abramo”. A obra Versos adversos adorna-se pelos elementos de intertextualidade bíblica, construída sob a égide de um sujeito duplo, tendo em vista que o poeta aparece como um sujeito civil (empírico) e como um sujeito fundado na linguagem poética.
A epígrafe inicial refere-se aos primeiros versos da Antologia Versos Adversos, a qual é inaugurada com a imagem metafórica de um silêncio comunicante, uma vez que o eu-lírico evoca o canto coletivo às margens do rio Araguaia. A imagem das águas figura tanto em alguns poemas como na ilustração de Ênio Squeff, tornando temas e lembranças vivenciadas pelo sujeito individual e coletivo nas décadas de 1960 e 1970, conforme o poema “NOSSAS VIDAS SÃO NOSSOS RIOS”:
 
Assim era, assim vivíamos
o Araguaia nas décadas de 1960, de 1970
Nossas vidas são os rios.
Minha vida é este Araguaia!
Indescritível
Indecifrável
ao qual se volta sempre
como a um lar, fatídico e feliz.
(CASALDÁLIGA, 2006, p. 20).
 
 A antologia congrega aproximadamente cento e sete poemas e outros noemas (recados curtos e haikais) que são somados a um lirismo do chão e do povo, bem como de forte recorrência à temática religiosa enunciada por um sujeito autobiográfico. 
Sobre a experiência individual do sujeito moderno, inicialmente, menciona-se Lírica e sociedade, de Theodor Adorno (1993). Para ele, “o conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais”. Em consequência, a experiência individual do sujeito lírico se torna um produto voltado para o coletivo. É justamente nesse âmbito que se pode inserir a lírica de Casaldáliga. Um poeta que trabalha a expressão da subjetividade individual acoplada à voz de um lirismo coletivo.
 Destarte, seja por meio do diálogo constante com o tema religioso-bíblico, seja na conversa com outros autores: Cora Coralina, Guimarães Rosa, Gonçalves Dias, Luiz Gonzaga, o poeta Casaldáliga faz brotar o verbo sagrado de sua arte, proporcionando ao leitor de memória intertextual uma leitura que se funda nas experiências do sujeito empírico e outra leitura arregimentada na memória coletiva, de modo que o verbo se faça classe:
 
No ventre de Maria
Deus se fez homem.
Mas, na oficina de José
Deus também se fez classe.
(CASALDÁLIGA, p.43).
 
 
A veia do enxerto discutida por Jacques Derrida (1988) perpassa o poema “E O VERBO SE FEZ CLASSE”, o qual é embebido na história do nascimento do menino Jesus que se transforma em carne após a presença do divino. Para Alfredo Bosi (2006, p.15), os versos trazem “o desconforto das ortodoxias”, sendo que “cristianismo e marxismo dão-se as mãos” em Pedro Casaldáliga.
O poema “CONSTATAÇÃO DE NATAL” é banhado por paradoxos no jogo intertextual:
 
Não vi a estrela falada,
Mas vi que Deus era pobre.
Maria estava acordada a noite,
E estava desacordado,
Para sempre, o rei Herodes
(CASALDÁLIGA, p.42).
 
O paradoxo e a desconstrução do intertexto são elementos dos versos que o eu-lírico, fundado no poder da linguagem, reinventa o texto primeiro, lembrando o que defendeu Julia Kristeva (1974, p. 146) sobre a intertextualidade na obra literária. Segundo a autora, “todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, sem dúvida, pelo menos como dupla”.
Nesta desconstrução do discurso adotado no “Novo testamento”, o eu-lírico de Casaldáliga institui um Deus aquém da linha da bonança, uma Maria de Nazaré que presenciou a fecundação do espírito com olhos abertos e um rei que se deixou perpetuar no sono, simbolizando uma figura oposta ao Herodes delineado no texto bíblico. Conforme consta nas Escrituras Sagradas, Herodes (o Grande) assassinou as crianças de Belém, numa tentativa de encontrar e matar o menino Jesus (Mateus 2:1-16).
Os temas do sagrado e da miséria social aparecem como reflexão de dois sujeitos como se nota nos versos dísticos: “Tudo é relativo/Menos Deus e a fome”. O poeta instaura a voz da transcendência e da imanência. Bosi assim definiu o dístico de Casaldáliga: “É uma frase que nos faz compreender o homem da fé mais ardente e o homem da poesia rente ao chão que é Pedro Casaldáliga” (BOSI, 2006, p. 16).
No artigo Tempos de libertação na poética de Pedro Casaldáliga” (2008), a pesquisadora Rosana Rodrigues da Silva confere que:
 
[...] o poeta assume a voz de um sujeito coletivo que sofre a perda não só da terra, mas a ausência de um espaço-temporal, onde a natureza guarda seu sentido primeiro. O sentimento da natureza perdida é mostrado pela visão de um espaço presentificado (SILVA, 2008, p.2).
 
A respeito do espaço poético e desse sujeito coletivo, poder-se-ia asseverar que a marca do eu subjetivo se soma ao outro e se torna explícita em um dos “noemas” do autor:
 
Entre o seu olhar frio
E o meu misto quente
O menino enfiou-me em desabafo
Sua fome impotente
(CASALDÁLICA, 2006, p.125).
 
No texto sobrepuja a individualidade oriunda de um lirismo emprestado ao outro que quase se confunde em um nós. O poeta convoca o coletivo para a subjetividade da lírica ao inserir a fome do menino como temática social. Sob esse prisma, o texto provoca mais de uma identidade, levando a crer nas considerações de Michael Collot (2004), ao dizer que o poeta em vez de excluir a individualidade, inclui a alteridade.
Efetivamente, trata-se de uma chamada ruptura com a tradição do sujeito lírico. Em O sujeito lírico fora de si, o autor salienta que para o sujeito estar fora de si, significa perder o controle da interioridade. O eu - poético não se coloca mais no âmbito da identidade, mas da alteridade, tendo em vista que coloca o ser no mundo e para o outro. Ao sair de si, o sujeito lírico “coincide consigo mesmo, não como uma identidade, mas como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade, não para se contemplar num narcisismo do eu, mas para realizar-se como um outro” (COLLOT, 2004, p. 167). 
A poesia social de Casaldáliga aproxima-se da crítica adotada por Adorno (1993) ao elucidar que numa sociedade de que o poeta deixou de ser o porta-voz para ser o marginal maligno que fala do que não se quer reconhecer, a subjetividade pessoal passa a ter menos importância.